Estão na ordem do dia – e bem – as questões relacionadas com o Ambiente (e, neste, com o crítico problema das alterações climáticas), com a Natureza, com os animais.
Questões complexas de que este despretensioso texto, visando distinguir (ainda que correlacionando) as coisas da Natureza e a “natureza das coisas”, apenas quer (e não está garantido que se consiga) abordar um ínfimo aspecto das “coisas” de um domínio que daqueles é transversal, aliás fulcral.
De um domínio ainda mais complexo, quer isoladamente, quer relacionando-se (como não pode deixar de se relacionar) com as “coisas” do Ambiente, da Natureza e dos animais: do domínio das pessoas.
Se algo pode haver de humanidade em certas coisas, quando a sede de ter coisas cada mais nos desumaniza,
Uma caneta de marca famosa, cara, comprada numa qualquer loja de luxo, não (nos) é igual, vale-nos muito menos do que a caneta barata e velhinha que tem “dentro dela” qualquer pessoa querida que no-la ofereceu há muitos anos.
O mesmo se passa com os animais. Por (con)viverem connosco muito tempo da nossa vida e de algum modo também fazerem parte (como mediadores) das nossas relações com tantas pessoas, os animais, nesse sentido, também (nos) podem “ter pessoas dentro”.
Nos dois gatos, um cão e uma cadela que por aí andam em casa (bem, nas redondezas próximas, uns mais do que outros), no sentido precedente, há pessoas “dentro” deles: nós próprios, a nossa família e outras pessoas das nossas relações. Isto, na estrita acepção da relação (física mas, daí, porque quotidiana, de algum modo progressivamente afectiva) que mantemos com eles há muitos anos.
Depois, os animais, se bem que não humanos do ponto de vista literal, real, são realmente (e agora até legalmente1 ) –”seres vivos dotados de sensibilidade”. Pelo menos do ponto de vista físico, como nós, humanos.
Daí que, mesmo não nos relacionando com os biliões, triliões de animais que (por enquanto…) por aí existem no mundo, tendo nós conhecimento de que sobre eles é exercida violência gratuita (como no caso das touradas, mas não só, também, por exemplo, o cruel abandono e outros maus tratos de animais de “companhia”, aliás agora punidos por lei como crimes2), podemos entender que (nos) passa a “haver” pessoas “dentro” desses animais violentados. Porque a violência, qualquer violência, sobre “seres vivos dotados de sensibilidade”, quaisquer que sejam esses “seres vivos dotados de sensibilidade” (por exemplo, os touros de lide ou quaisquer outros animais maltratados), projecta-se nas pessoas, faz sofrer as pessoas, visto que estas, para além de “seres vivos dotados de sensibilidade” física, são “seres vivos dotados de sensibilidade” mental, de racionalidade, de capacidade de abstracção, de generalização, de universalização e de integração. Sobretudo, dotados de sensibilidade emocional.
Excepção serão aquelas pessoas imunes a sentirem a violência sobre outros “seres vivos dotados de sensibilidade”, quiçá sobre outras pessoas, mesmo sobre si próprios. Mas, nesse caso, estamos perante pessoas com sintomas de doença. No mínimo, de desumanidade.
Para além disso, como nós, pessoas, os animais em geral pertencem, fazem parte da Natureza.
Se bem que, neste sentido, nós, pessoas, humanos, até nos devamos sentir inferiorizados relativamente aos animais em geral, não humanos. É que estes, transformando a Natureza, (re)constroem-na (re)construindo a sua própria natureza. Enquanto que nós, humanos, transformando a Natureza, cada vez mais a destruímos (mormente pela produção de “mercadoria”) destruindo (e muito pelo trabalho, pelas condições em que este é realizado) a nossa própria (humana) natureza.
De qualquer modo, algo muito claro: se os animais em geral são “seres vivos dotados de sensibilidade” (pelo menos, física), tal não significa mais do que isso, não significa serem humanos.
Animais em geral são animais, (meramente) animalescos. Pessoas são pessoas, humanas. Humanismo é uma coisa; animalismo é outra. Animalidade não é (a) Humanidade.
E daí, seja de que modo for e com que pretextos e objectivos forem (inclusive académicos, ideológicos, políticos …), mesmo que “só” circunstancial e indirectamente, nunca o animalismo se pode sobrepor, diluir, muito menos eliminar, o humanismo.
Nunca a reflexão (e muito menos a acção) sobre a animalidade se pode sobrepor, diluir, muito menos eliminar a reflexão, sobretudo a acção, sobre a Humanidade.
A Teixeira de Pascoaes, podemos ir buscar apoio para compreendermos melhor isto: “Eliminem a palavra Humanidade e ficaremos todos cobertos de pêlo, num instante” .
Imprescindível, portanto, a palavra Humanidade.
Porque não prescindir da palavra Humanidade implica considerar, para além do Ambiente, da Natureza e dos animais, o que (quem) – as pessoas –, estrita e essencialmente, consubstancia a Humanidade.
E, na abstracção desta palavra, imprescindível é então considerar, reflectir, agir o que, concretamente, das pessoas é a essência, a condição humana. Mais concretamente ainda, o que das pessoas é condição de qualidade de vida humana, a humanidade.
Ambiente, Natureza e animais, domínios de reflexão e acção (económica, social, académica, ideológica, política…) importantes, indispensáveis, sim.
Mas, ainda que não dispensando a reflexão (e acção) sobre esses domínios, imprescindível, fulcral, é a reflexão (e acção) sobre o domínio da Humanidade e da humanidade desta. Sobre a humanidade da Humanidade.
1Código Civil, na redacção da Lei 8/2017, de 3 de Março.
2Código Penal (Artº 387 a 389), na redacção da Lei Nº 69/2014, de 24/8.
3Aforismos – selecção e organização de Mário Cesariny – 1998, Assírio & Alvim.
Nascido em Santa Cruz da Trapa (São Pedro do Sul) em 23-08-1946. Licenciado e com pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos e Psicologia do Trabalho. (ISLA e Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação do Porto). Inspector do trabalho (aposentado). Escreve no Público, Esquerda.Net, Gazeta da Beira, Monde Diplomatique (EP) e revistas especializadas na área do Trabalho.
Este autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.