Trabalho e jornalismo – acidente de Borba

Foto de José Manuel | Facebook Paixão Alentejana
“O Estado falhou”.”Falhas na fiscalização.”
Reproduzo, respectivamente, a voz da jornalista e o rodapé da notícia (RTP1, Jornal da Tarde, 10/11/2019) sobre o acidente de trabalho mortal em Borba, Vila Viçosa, no dia anterior: um trabalhador, juntamente com o camião que conduzia, caiu num fosso deixado numa pedreira desactivada, ficando, com a viatura com a qual trabalhava, submerso na água aí acumulada.

A peça televisiva sobre este acidente remetia depois, associando os dois acidentes naquelas conclusões (“o Estado falhou” e “falhas na fiscalização”), para o acidente aí ocorrido há um ano (19/11/2018), no qual um troço de cerca de 100 metros da Estrada Municipal 255 colapsou devido ao deslizamento de um grande volume de rochas, blocos de mármore e terra para o interior de duas pedreiras, provocando cinco mortos, dois deles trabalhadores de uma pedreira.
Sem dúvida, o Estado tem responsabilidades inerentes aqueles acidentes. Sim, como “fiscalizador” e, mais, até antes disso, como licenciador e mesmo como legislador (inclusive na regulamentação do licenciamento de actividades industriais, para abreviar).

Mas o que se visa aqui relevar é, no enquadramento geral do papel que a comunicação social (e muito especialmente a televisão) pode (deve) ter quanto às questões do (e no) Trabalho, a forma como, em regra, trata os acidentes de trabalho.

No caso deste acidente de Borba, aquela notícia na RTP1 é um exemplo do quanto tal tratamento informativo pode ser antipedagógico do ponto de vista preventivo e, mesmo, pelo menos por omissão, pode acentuar a sensação de impunidade quanto a responsabilidades e responsáveis a questionar. Aqui, ao construir-se toda a peça informativa sobre o acidente centrando-se a responsabilidade no Estado, omite-se o principal e primeiro responsável por esse acidente de trabalho.

Já que se associam os dois acidentes, o de 2018 e o ocorrido agora em 9/11/2019, algo que há a referir é que, quanto ao de há um ano, tal acidente não se teria provavelmente verificado se os exploradores da pedreira não prosseguissem com a actividade, encostando praticamente o fosso de exploração da pedreira à estrada, sem a pedreira estar licenciada, o que então não se verificava.

(Entre parêntesis, diga-se que é de se ficar arrepiado quando se ouve, como agora se ouviu a propósito da discussão sobre o salário mínimo, dirigentes de topo das confederações patronais a condicionarem a subida do salário mínimo à “produtividade” e à “competitividade” e, estas, a que “o Estado lhes saia da frente”, por exemplo, promovendo o “licenciamento zero”).

Sim, terá “faltado fiscalização” (um “fiscal” do Estado ali permanentemente, todos os dias, 24 horas por dia?) para fazer prevenir o acidente de há um ano e, agora, o de 9/11/2019.

Mas, então, antes, não faltou que os empregadores dos trabalhadores sinistrados tivessem (e, para isso, há muito que a Lei os obriga a disporem de estruturas, organização e técnicos com habilitações e qualificações legalmente previstas), avaliado os riscos de tal trabalho e adoptado as medidas (técnicas ou organizacionais) da sua prevenção, sintetizando, tivesse, “assegurado ao trabalhador condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com aquele trabalho…” (Código do Trabalho – Artigo 281º)?

Especialmente no domínio dos acidentes de trabalho, por um lado, lamenta-se que seja um “ângulo morto” do jornalismo e, por outro, quando tal não acontece, no tratamento jornalístico que lhes é dado, o enfoque é de tal modo mórbido, “criminal” e sensacionalista que a pedagogia preventiva que de tal decorre é inversamente proporcional à histeria criada.

E contudo, do quanto o trabalho, o trabalho real e concreto, mormente as condições em que é realizado, tem vindo a estar ausente do (bom) jornalismo, vítimas igualmente são, como (também) trabalhadores, os próprios jornalistas1.

Outros artigos deste autor >

Nascido em Santa Cruz da Trapa (São Pedro do Sul) em 23-08-1946. Licenciado e com pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos e Psicologia do Trabalho. (ISLA e Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação do Porto). Inspector do trabalho (aposentado). Escreve no Público, Esquerda.Net, Gazeta da Beira, Monde Diplomatique (EP) e revistas especializadas na área do Trabalho.
Este autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts
CGTP Interjovem
Ler Mais

FINALMENTE???…

Este último mês de verão, foi bastante pródigo em motivações diversas para escrever textos também diversos. Contudo, o…

O primeiro dos piores

O jornal “Público”, na sua edição de 24 de Junho último, deu destaque à Covilhã pelos piores motivos.…
25 de Abril de 1974
Ler Mais

25 de abril ou a pátria das mulheres e dos homens livres

O 25 de abril é talvez o nosso feriado civil mais importante, quer dizer, principalmente para o nosso “povo de esquerda” ou, de forma mais ampla, para aqueles que se recusam a aceitar as virtudes do regime fascista ou um qualquer retorno a uma situação política antes da instituição da democracia (apesar dos seus muitíssimos limites sociais, económicos e políticos, e de tudo o que esta deixou por cumprir).
Prisão
Ler Mais

Confinamento(s)

Em tempo de ditadura, vivi duas experiências de confinamento com diferentes características. Em comum o facto de terem…
Skip to content