Vinte e Cinco de Abril, sempre!

“O 25 de Abril foi um dos dias mais felizes da minha vida”.
A muitas pessoas já ouvimos esta frase, de cujo sentido geral eu também comungo.
Compreende-se, sobretudo da parte de quem alimentou, durante anos, demasiados (porque, para muitos, de demasiado sofrimento, se não de morte), a esperança de (ainda) viver “esse “dia inicial inteiro e limpo”, como escreveu Sophia1.

Porque todos nós somos nós “e as nossas circunstâncias” e “se não as salvamos a elas não nos salvamos a nós”2, a felicidade colectiva (bem, com algumas excepções…) do 25 de Abril de há 45 anos foi sobretudo induzida pela expectativa de mudança política (e necessariamente humana e social), a expectativa da “salvação” das circunstâncias humana e socialmente degradadas por 48 anos de ditadura humana, social, cultural, económica e politicamente castradora e, mesmo, criminosa.
E isso dependeu muito, desde logo, das “circunstâncias” de paz, sendo importante lembrar que foi a guerra (colonial) que essa ditadura obrigou a sofrer (e a morrer) a muita gente que também despoletou o seu fim.
Muito, também, das circunstâncias de liberdade (de expressão, de reunião, de manifestação, de imprensa, de organização e filiação política, etc, ).
Mas, sobretudo, tal explosão de felicidade colectiva de então (de que o Primeiro de Maio de 1974 foi expressão marcante), dependeu muito, para além das expectativas (conscientes ou inconscientes, expressas ou ainda titubeantes) de paz, das expectativas de “pão, habitação, saúde, educação …”, isto é, das expectativas de desenvolvimento humano, social, económico, cultural, político de uma nova sociedade, democrática.

Já em democracia, as pessoas continuaram expectantes quanto a isso, quanto à concretização e perduração da felicidade colectiva desse “dia inicial inteiro e limpo” de há 45 anos.

Nessa (por essa) expectativa, muitas vezes expressaram na rua não aceitarem passiva e conformadamente, “estoicamente”, os argumentos de “racionalidade” e “inevitabilidade”, “sem alternativa”, de decisões (“medidas”) políticas (algumas de há meia dúzia de anos) perversamente destrutivas de tais expectativas, tendo em conta o nefasto rasto humano e social (e até económico) que deixaram, foram deixando, vão deixando por não revertidas, se bem que relativamente suavizadas.
E, ainda reminiscências dessa expectativa de felicidade colectiva de há 45 anos, as pessoas têm razões para continuarem (e é bom que continuem) cépticas quanto às evidências (às vezes, as evidências cegam, de tão evidentes) com que os seus “gurus” nos continuam a demonstrar a “indispensabilidade” dessas (tais) “medidas”, ainda que com “pequenas alterações”, “não drásticas”.
Sobretudo, lá no íntimo, as pessoas reflectem sobre até que ponto muito tem faltado a essas “medidas” um (outro) sentido mais vincado, um (outro) rumo que não o essencialmente financeiro(ista), um rumo que, mais firme, lhes dê (mais) coerência essencialmente humana e social, enfim, um rumo que as harmonize e oriente neste sentido, que as ligue mais ao que as pessoas, como cidadãos e, sobretudo, como tal, como pessoas e em sociedade, têm razões para continuarem a almejar: dias mais (concretamente) “inteiros e limpos”.

Mais, muito mais, igualdade social, sobretudo. Mais, melhor e mais pronta Saúde Pública, isto é, mais e melhor Serviço Nacional de Saúde, na sua concepção originária. Mais e melhor Escola Pública. Melhor e mais pronta Justiça. Melhores, muito melhores condições de emprego e de trabalho, na medida em que são centrais e transversais nas condições de vida. Mais e melhor segurança e inclusão social, mormente de quem, por condição física, mental, etária, familiar, cultural, social ou económica, mais vulnerável é.

Sim, é certo que nos dizem que “estamos a crescer acima da média da União Europeia” (UE), que “estamos a cumprir todos os critérios dos Tratado e dos Pactos da UE”, que “as nossas contas públicas estão equilibradas”.
E também é certo que isso, a economia, (também) é importante, sem dúvida.
Mas se entendida como instrumento, como meio e não como fim, como ciência cuja essência são as pessoas e a sociedade. E não (só) as finanças, o “equilíbrio financeiro” (meramente) em si.
Sim, é certo – dizem-nos – temos “mais crescimento”, “mais economia”. Mas a questão é se a essa mais economia, não falta, nas especificações concretas atrás expressas (“pão, habitação, saúde, educação …”, igualdade, justiça social inclusão…), como “cimento” de ligação aquelas legítimas expectativas do 25 de Abril de há 45 anos, não falta – dizia-se – mais sociedade, mais (efectiva) humanidade.

A propósito, um outro grande poeta português, escreveu que “sem poesia não há humanidade”3.
Então, ainda pelas reminiscências da explosão de felicidade colectiva do 25 de Abril de há 45 anos, vem também a propósito desta expectativa de maior essência humana e social a que deverá estar mais ligado o “crescimento” da nossa economia, recorrermos a um outro grande poeta: “Tenho todas as condições para ser feliz, excepto a felicidade. As condições estão desligadas umas das outras”4.
É bom que se mantenham, e activas, as reminiscências dessas expectativas de felicidade colectiva induzidas por aquele “dia inicial inteiro e limpo” de há 45 anos. Aliás, só é possível ainda mantê-las, sem que abafadas fossem, justamente porque, então, “amanheceu” aquele dia.
E por isso, ainda que só por isso, apesar de tudo de depois e de agora, valeu, valeu incomensuravelmente a pena.
Enfim, é certo que entre o dia 25 de Abril de 1974 e o dia 25 de Abril de 2019, a única coincidência segura, do ponto de vista de felicidade colectiva, talvez seja o facto de ambos os dias, o de há 45 anos e o de hoje, terem coincidido com uma quinta-feira (e depois de amanhã é sábado …).
De qualquer forma, olhando para trás sem perder de vista o horizonte, Vinte e Cinco de Abril, sempre!

(este autor escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”)

1 Sophia de Mello Breyner Andresen – poema “25 de Abril” (O Nome das Coisas, 1977)
2 Paráfrase de “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim.” (José Ortega y Gasset – Meditaciones del Quijote, 1914)
3 Teixeira de Pascoaes (Amarante, 1877-1952) : Em Aforismos (selecção e organização de Mário Cesariny – 1998)
4 Barão de Teive (heterónimo de Fernando Pessoa – em A Educação do Estóico, 1930)

Outros artigos deste autor >

Nascido em Santa Cruz da Trapa (São Pedro do Sul) em 23-08-1946. Licenciado e com pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos e Psicologia do Trabalho. (ISLA e Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação do Porto). Inspector do trabalho (aposentado). Escreve no Público, Esquerda.Net, Gazeta da Beira, Monde Diplomatique (EP) e revistas especializadas na área do Trabalho.
Este autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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