Pensar Marx depois de Marx

Foto por Pierre Wolfer no Flickr
A influência de Karl Marx no pensamento que o século XX produziu é inegável. Todos nós conhecemos e lemos pensadores, filósofos ou não, que se relacionaram com a obra do autor alemão. Desde os seus críticos aos seus seguidores. De Lenin a Michel Foucault. De Jean-Paul Sartre a Pol Pot. A sua influência fez-se sentir por todo o século XX, carregando com ela todo um rol de consequências positivas e negativas, algumas trágicas. É certo que não podemos imputar a Marx a culpa das ditaduras que foram erigidas à volta do seu nome. No entanto, não podemos fechar os olhos e limpar a história do que aconteceu em seu nome. Infelizmente, o marxismo e, principalmente, o comunismo ficaram manchados de muito sangue, demasiado, tendo em conta aquilo a que se sempre se propuseram estes dois nomes da história da filosofia política.

No entanto, todos nós somos herdeiros de Marx, herdeiros dos seus espectros, não só do comunismo, mas de todos os espectros que se formaram e se formam a cada nova leitura de Marx e do marxismo, a cada nova interpretação, a cada nova interpretação de interpretação. Os espectros de Marx mantêm-se como parte constituinte da cultura, da política e da filosofia que hoje nos chegam e se desenvolvem. Quer seja em universidades ou em partidos políticos, quer seja direta ou indiretamente em referência à vasta linha de pensamento que corre desde Marx, existe uma longa herança a ser tida em conta. Como o nota Jacques Derrida, a herança que nos chega de Marx é sempre uma herança heterogénea, composta de múltiplos espectros que nunca se unificam:

Uma herança não se junta nunca, ela não é jamais una consigo mesma. Sua unidade presumida, se existe, não pode consistir senão na injunção de reafirmar escolhendo. É preciso quer dizer é preciso filtrar, peneirar, criticar, é preciso escolher entre vários possíveis que habitam a mesma injunção. E habitam-na de modo contraditório, em torno do segredo. Se a legibilidade de um legado fosse dada, natural, transparente, unívoca, se ela não pedisse e não desafiasse ao mesmo tempo a interpretação, não se teria nunca o que herdar. Seríamos afetados por isso como por uma causa – natural ou genética. Herda-se sempre um segredo – que diz “leia-me, alguma vez serás capaz?”. A escolha crítica pedida por toda reafirmação de herança diz respeito também, exatamente como a memória, à condição de finitude. O infinito não pode herdar não pode ser herdado. A injunção (escolhe e decide no que herdas, dirá ela sempre) não pode ser una a não ser dividindo-se, rasgando-se, diferindo de si mesma, falando a cada vez diversas vezes – e com diversas vozes.”1

Este apelo que Derrida nos faz para que não unifiquemos a herança de Marx, os espectros de Marx que nos assombram, que velam sobre nós, é também um apelo a que não façamos dele nossa propriedade, a que não tomemos esta grande herança, esta grande tradição de pensamento, da qual tanto resultou e continua a resultar, a que não a tomemos como nossa propriedade, isto é, a que conservemos a diversidade e a heterogeneidade desta obra e tradição sem que a marquemos com dogmas. É sempre preciso repensar o marxismo.

A obra de Derrida que aqui citei, Espectros de Marx, publicada em 1993, é uma resposta ao que, uns anos antes, após a queda do muro de Berlim, foi surgindo e se foi entranhando (algo que ainda hoje facilmente se observa) no subconsciente comum, materializado na obra de Francis Fukuyama O Fim da História e o Último Homem, na qual o autor defende que, com a queda do comunismo, ficava provado que o único sistema viável de organização político-económica, o único capaz de se suster e de suster a paz dos povos, seria a democracia liberal ou, como ficou a conhecer-se a partir dos anos oitenta e noventa, neo-liberalismo, a sua abordagem mais radical. Fukuyama dava como mortos o marxismo e o comunismo. Para o autor americano, chegámos ao fim da história, para além disto, não mais é possível evoluir. Não há qualquer passo em frente.

Trata-se muitas vezes de fingir constatar a morte aí onde a certidão de óbito ainda é o performativo de uma ação de guerra ou a gesticulação impotente, o sonho agitado de um assassínio.”2

Esta certidão de óbito que foi passada ao marxismo, Derrida vê como uma tentativa de exorcizar os espectros que ainda rondavam, que não caíram com o muro de Berlim nem nesse mesmo muro se reviam ou se apoiavam:

Um tempo do mundo, hoje, por estes tempos: uma nova «ordem mundial» busca estabilizar um desregramento novo, necessariamente novo, instalando uma forma de hegemonia sem precedente. Trata-se, pois, mas como sempre, de uma forma de guerra inédita. Assemelha-se, em parte, a uma grande «conjuração» contra o marxismo, um «conjuro» do marxismo: uma outra vez, uma outra tentativa, uma nova, sempre nova mobilização para lutar contra ele, contra isto e contra estes que ele representa e continuará a representar (a ideia de uma nova Internacional), e para combater uma Internacional exorcizando-o.”3

Derrida pede uma nova Internacional, uma “aliança de um rejuntar sem cônjuge, sem organização, sem partido, sem nação, sem Estado, sem propriedade.”4, “Um vínculo de afinidade, de sofrimento e de esperança”.5 Uma nova Internacional que herde Marx, que herde o espírito de Marx que ainda permanece vivo e que nos chama à responsabilidade, que nos chama à resposta ao apelo do outro, que nos faz lutar por um mundo diferente. Esse espectro é o espectro da justiça. Ele continua por vir, não se fez ainda materializar, não tocou ainda o passado, o presente ou o futuro. Ele permanece no porvir, no absoluto desconhecido. É esse o espectro de Marx que devemos portar. É esse que devemos procurar a cada leitura e releitura que fazemos dos seus textos.

Não nos enganemos: a justiça e a democracia chegarão ao mesmo tempo. Digo que chegarão porque nem uma nem outra se encontram no mundo, pelo que quando nos falam de que já temos justiça e democracia, de que a justiça e a democracia já estão entre nós, já se encontram presentes, então, é aí mesmo que tanto uma quanto outra são reenviadas para o porvir.

A democracia e a justiça permanecem sempre por vir, mas é necessário caminhar em direção a elas. Para isso, a herança de Marx é absolutamente indispensável. Mas também é indispensável que pensemos Marx para lá de Marx, para lá dos dogmas que foram surgindo à sua volta, para lá da literalidade dos seus textos, para lá das tragédias que se sucederam em seu nome. É necessário repensar para bem herdar.

Saudemos Marx, pois ele ainda por aí continua.

1 Derrida, Jacques, Espectros de Marx, trad. Anamaria Skinner, Dumará, Rio de Janeiro, 1994, p. 33

2 Ibid., p. 71

3 Ibid., p. 74

4 Ibid., p. 48

Outros artigos deste autor >

1994 – Viseu. Data e local de nascimento. Cresce em Canas de Senhorim. Licenciado em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Está actualmente a frequentar o mestrado na mesma área de estudos. Publicou um livro de poemas intitulado Eternidade.

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Nesta rubrica se procurará reflectir – e provocar a reflexão – sobre os caminhos da filosofia e da produção teórica na esquerda radical, na esquerda igualitária e libertária, particularmente de tradição marxista, e, principalmente, com uma orientação emancipatória.

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