No entanto, todos nós somos herdeiros de Marx, herdeiros dos seus espectros, não só do comunismo, mas de todos os espectros que se formaram e se formam a cada nova leitura de Marx e do marxismo, a cada nova interpretação, a cada nova interpretação de interpretação. Os espectros de Marx mantêm-se como parte constituinte da cultura, da política e da filosofia que hoje nos chegam e se desenvolvem. Quer seja em universidades ou em partidos políticos, quer seja direta ou indiretamente em referência à vasta linha de pensamento que corre desde Marx, existe uma longa herança a ser tida em conta. Como o nota Jacques Derrida, a herança que nos chega de Marx é sempre uma herança heterogénea, composta de múltiplos espectros que nunca se unificam:
“Uma herança não se junta nunca, ela não é jamais una consigo mesma. Sua unidade presumida, se existe, não pode consistir senão na injunção de reafirmar escolhendo. É preciso quer dizer é preciso filtrar, peneirar, criticar, é preciso escolher entre vários possíveis que habitam a mesma injunção. E habitam-na de modo contraditório, em torno do segredo. Se a legibilidade de um legado fosse dada, natural, transparente, unívoca, se ela não pedisse e não desafiasse ao mesmo tempo a interpretação, não se teria nunca o que herdar. Seríamos afetados por isso como por uma causa – natural ou genética. Herda-se sempre um segredo – que diz “leia-me, alguma vez serás capaz?”. A escolha crítica pedida por toda reafirmação de herança diz respeito também, exatamente como a memória, à condição de finitude. O infinito não pode herdar não pode ser herdado. A injunção (escolhe e decide no que herdas, dirá ela sempre) não pode ser una a não ser dividindo-se, rasgando-se, diferindo de si mesma, falando a cada vez diversas vezes – e com diversas vozes.”1
Este apelo que Derrida nos faz para que não unifiquemos a herança de Marx, os espectros de Marx que nos assombram, que velam sobre nós, é também um apelo a que não façamos dele nossa propriedade, a que não tomemos esta grande herança, esta grande tradição de pensamento, da qual tanto resultou e continua a resultar, a que não a tomemos como nossa propriedade, isto é, a que conservemos a diversidade e a heterogeneidade desta obra e tradição sem que a marquemos com dogmas. É sempre preciso repensar o marxismo.
A obra de Derrida que aqui citei, Espectros de Marx, publicada em 1993, é uma resposta ao que, uns anos antes, após a queda do muro de Berlim, foi surgindo e se foi entranhando (algo que ainda hoje facilmente se observa) no subconsciente comum, materializado na obra de Francis Fukuyama O Fim da História e o Último Homem, na qual o autor defende que, com a queda do comunismo, ficava provado que o único sistema viável de organização político-económica, o único capaz de se suster e de suster a paz dos povos, seria a democracia liberal ou, como ficou a conhecer-se a partir dos anos oitenta e noventa, neo-liberalismo, a sua abordagem mais radical. Fukuyama dava como mortos o marxismo e o comunismo. Para o autor americano, chegámos ao fim da história, para além disto, não mais é possível evoluir. Não há qualquer passo em frente.
“Trata-se muitas vezes de fingir constatar a morte aí onde a certidão de óbito ainda é o performativo de uma ação de guerra ou a gesticulação impotente, o sonho agitado de um assassínio.”2
Esta certidão de óbito que foi passada ao marxismo, Derrida vê como uma tentativa de exorcizar os espectros que ainda rondavam, que não caíram com o muro de Berlim nem nesse mesmo muro se reviam ou se apoiavam:
“Um tempo do mundo, hoje, por estes tempos: uma nova «ordem mundial» busca estabilizar um desregramento novo, necessariamente novo, instalando uma forma de hegemonia sem precedente. Trata-se, pois, mas como sempre, de uma forma de guerra inédita. Assemelha-se, em parte, a uma grande «conjuração» contra o marxismo, um «conjuro» do marxismo: uma outra vez, uma outra tentativa, uma nova, sempre nova mobilização para lutar contra ele, contra isto e contra estes que ele representa e continuará a representar (a ideia de uma nova Internacional), e para combater uma Internacional exorcizando-o.”3
Derrida pede uma nova Internacional, uma “aliança de um rejuntar sem cônjuge, sem organização, sem partido, sem nação, sem Estado, sem propriedade.”4, “Um vínculo de afinidade, de sofrimento e de esperança”.5 Uma nova Internacional que herde Marx, que herde o espírito de Marx que ainda permanece vivo e que nos chama à responsabilidade, que nos chama à resposta ao apelo do outro, que nos faz lutar por um mundo diferente. Esse espectro é o espectro da justiça. Ele continua por vir, não se fez ainda materializar, não tocou ainda o passado, o presente ou o futuro. Ele permanece no porvir, no absoluto desconhecido. É esse o espectro de Marx que devemos portar. É esse que devemos procurar a cada leitura e releitura que fazemos dos seus textos.
Não nos enganemos: a justiça e a democracia chegarão ao mesmo tempo. Digo que chegarão porque nem uma nem outra se encontram no mundo, pelo que quando nos falam de que já temos justiça e democracia, de que a justiça e a democracia já estão entre nós, já se encontram presentes, então, é aí mesmo que tanto uma quanto outra são reenviadas para o porvir.
A democracia e a justiça permanecem sempre por vir, mas é necessário caminhar em direção a elas. Para isso, a herança de Marx é absolutamente indispensável. Mas também é indispensável que pensemos Marx para lá de Marx, para lá dos dogmas que foram surgindo à sua volta, para lá da literalidade dos seus textos, para lá das tragédias que se sucederam em seu nome. É necessário repensar para bem herdar.
Saudemos Marx, pois ele ainda por aí continua.
1 Derrida, Jacques, Espectros de Marx, trad. Anamaria Skinner, Dumará, Rio de Janeiro, 1994, p. 33
2 Ibid., p. 71
3 Ibid., p. 74
4 Ibid., p. 48
5 Ibid., p. 117
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Big Data como Pensamento Unidimensional – Sobre a Relevância do Marxismo na Sociedade Tecnológica