A liberdade dá muito trabalho

1.º de Maio
Foto por I, Henrique Matos, CC BY-SA 3.0 <http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/>, via Wikimedia Commons
Foram os “capitães de Abril” que lideraram a revolução contra o poder autoritário e utilizaram uma música como código de início e a mesma contém uma mensagem de igualdade e fraternidade, através de uma parábola sobre uma terra onde o povo é quem mais ordena: o símbolo militar atuou quando o povo estava a dormir, porque a liberdade dá muito trabalho e só quem tem poder para revirar a história consegue realmente o fazer, quando intrinsecamente o deseja.

Hannah Arendt observava este poder intrínseco, adormecido, no povo ao descrever a democracia como só sendo alcançável se o povo for educado para o saber viver nesse estado de elevado poder descentralizado: a liberdade fornece muito trabalho a todos os que dela participem, extinguindo-se a acumulação de riqueza na primitiva classe dominadora. Se o povo age como operário e consumidor e desenha o estado como um mero agente económico, o activismo democrático desvanece na rotina diária por produzir mais para consumir mais: o povo esquece o que significa liberdade para se dissolver numa ilusão de libertação. É na dormência do povo que nasce a grande besta ditatorial – seja ela um individuo de carne e osso, ou uma organização colectiva. Segundo Adam McKay, Benito Mussolini criou a palavra “fascismo”, palavra essa definida como sendo uma fusão entre Estado e Corporação: as necessidades corporativas fundem-se nos deveres estatais, privando o social de se realizar ao tornar-se um objectivo secundário – só o activismo democrático garante o paradigma de liberdade numa sociedade de direito.

Portugal numa pura coincidência, festeja a liberdade num dia próximo ao de homenagem ao trabalhador. Liberdade, justiça e democracia são, mais do que conceitos a reaprender constantemente, estruturas interligadas. Não é possível obter estas três estruturas fundamentais, para quem é Humano, isoladamente, nem é possível trabalhar com dignidade sem estas mesmas três estruturas: só a liberdade pode criar democracia e só a justiça pode garantir que a democracia aplica legislação ética à liberdade, por forma a evitar a liberdade de um que acaba com a de outros – os impulsos das nossas vontades geram atritos quando entram em rota de colisão com as vontades dos outros, gerando-se caos na sociedade Humana com consequências tanto para Humanos como para a Natureza.

Ser livre dá realmente muito trabalho, a democracia também. Houve uns tempos terríveis em que declararam que o trabalho liberta, o honesto afirma que o trabalho árduo compensa, mas é o esperto que é rico e glorioso. Quantos recebem doutoramentos honoris causa por terem sido espertos a acumular dinheiro e outros que salvam milhares de pessoas, ou até milhões, nunca recebem um único reconhecimento? O trabalho e a liberdade afiguram-se como obras de arte – e a interpretação subjectiva de beleza nas mesmas é de acordo com a perspectiva de cada um e obras são criadas à vontade de cada artista. A necessidade de caçar e a governação são também formas de arte. O povo escolhe que arte é alimentada.

Se a governação é feita pelo povo, é necessário que o povo trabalhe para essa governação. É mais fácil escolher o fatalismo de que a democracia só não funciona em Portugal, conforme uma sondagem recente o demonstra, do que a coragem para activamente participar na mesma e a melhorar. O poder legislativo está separado do poder constitucional e o presidencial está separado do legislativo, logo se os alicerces democráticos existem, falta a vontade do povo para construir a beleza social, a arquitectura do edifício que pretende chamar de seu lar.

Num passado distante, o trabalho era uma simples organização em equipa entre quem cozinhava e quem caçava, ou digamos que entre quem cuidava da tribo e quem basculhava pelo que comer; entre esse passado distante e a modernidade, manifestou-se um fenômeno experimental:  a transformação dessas funções básicas e criaram-se hierarquias, estatutos sociais, governações, um código moral, um código legislativo, quem consegue criar e alterar regras nesses códigos, quem se certifica de que são impostas e de quem as tem de cumprir, mas sem esquecer que toda e qualquer função se resume a trabalho. Na formação ideal de equipa, existe liderança, suporte mútuo e papéis bem definidos; mas o Humano sendo ele um animal estrategista, adquiriu inteligência para o domínio dos fenômenos do mundo exterior – adquiriu também domínio das artes manipulativas.

Entre caçar para encontrar comida e caçar para alcançar o topo da hierarquia, existe um abismo denominado por crise existencial: não estamos seguros de que apenas pretendemos saciar o sobrevivente que reside em nós ou se buscamos um propósito espiritual para o que perseguimos diariamente por forma a comungarmos o nosso encontro com o sentido da vida, mas no fim não passamos de eternos corredores a tentar alcançar coisas das quais ficámos convictos de que valiam apena. Viktor Frankl estava correto de que o maior objetivo Humano é encontrar propósito e que todos os Humanos dividem-se entre os que são eticamente decentes e os que são indecentes, mas ambos premeiam todas as estruturas sociais, económicas e culturais. E os indecentes manipulam, desrespeitam a liberdade do outro acabando com a mesma.

Na mesma linha de raciocínio que manifestei em textos anteriores sobre a extinção da verdade, os ideais de Abril e a aspiração de que o trabalhador tem direitos, entre os quais liberdade, habitação digna e condições de trabalho dignas, ambos estão ameaçados na pós-modernidade: existe uma permissividade selvagem à relativização da ética; analisemos como exemplo o número de mortes da pandemia: uns afirmam que são dados errados porque contabilizaram pessoas que faleceram por outras causas – relativiza-se os que realmente faleceram diretamente devido à pandemia; relativiza-se os que sofrem de burnout porque escolheram perseguir uma carreira – e também porque têm de se sujeitar a um trabalho e ao pagamento de uma renda habitacional sufocante.

Os indecentes, pela classificação de Viktor Frankl referida anteriormente, preferem relativizar problemas sociais por forma a sustentar as suas convicções. Não é culpa do Estado que as rendas para habitação são tão elevadas, é culpa de quem não tem escrúpulos para as cobrar e por quem observa e nada faz para o impedir. Ser livre é diferente de saber sustentar a liberdade. No meu egoísmo posso ser livre porque sou influente e possuo muito capital financeiro, mas não sei sustentar a liberdade porque na minha apatia, na minha indiferença, permito que as liberdades dos outros terminem e convido os indecentes a propagar demagogias para ascenderem ao poder: mas um dia poderão roubar a minha liberdade.

A apatia portuguesa exagera-se na profecia da desgraça. Um empreendedor português ou um empreendedor alemão ambos pagam impostos, a diferença está nas suas convicções: o português está convicto de que a desgraça da sua empresa são as despesas, o alemão está convicto que se não inovar é a desgraça da sua empresa; ambos possuem um medo que os impele a querer manter o seu empreendimento, mas divergem na visão a longo prazo, divergem na solução para mitigar as consequências de que têm medo – e o português sucumbe a sua capacidade criativa numa necessidade primitiva por sobreviver. Tal como se olha para o trabalho como algo inútil, algo apenas obrigatório, assim se olha para o Estado.

Defender o trabalho e os ideais de Abril não é ser comunista, é ser Humanista. O querer uma maior igualdade entre classes sociais e melhores condições de trabalho, criou correntes filosóficas como o comunismo, o socialismo e outras derivadas, mas aquilo que é criado não significa que define aquilo que o criou. Se ser comunista é defender direitos dos trabalhadores, então a China seria a melhor nação para trabalhar, o que não acontece. É necessário alertar para o conto do vigário que reina na atualidade por parte de grupos partidários que pretendem o poder: iludem o povo com um inimigo em comum erradamente identificado, permitindo o fascismo ascender às oratórias públicas. A liberdade dá muito trabalho e quem ambiciona o poder está disposto a trabalhar arduamente pela sua liberdade individual: estaremos dispostos a trabalhar pela liberdade de todos, em vez de aguardar com saudade que um salvador volte do nevoeiro e nos salve da apatia e do desespero?

 

Arquivo sobre o 1 de Maio

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Nasci, cresci e vivo nos planaltos de Vila Maior, São Pedro do Sul, distrito de Viseu com vista privilegiada para diversas cordilheiras montanhosas. Comecei a escrever poesia em 2005 como forma de escapar à realidade pesada da minha timidez. A natureza, o primeiro fogo da paixão e a necessidade de exprimir injustiças sociais despertaram a minha mão esquerda a escrever como se a minha existência dependesse de tal ação. Enquanto adulto, comecei por trabalhar muito cedo, fui pai muito novo e de todo um tumulto social renasce uma paixão: pensar sobre o que me rodeia, mas em vez de definhar decidi filosofar e nunca mais parei até hoje. Nasceram dois livros de poesia, “Mente (des)Concertante” por parte da editora Poesia Fã Clube e “O Fluxo da Vida” editado na plataforma Amazon. Só mais tarde, licenciei-me em Engenharia Informática pelo Politécnico de Viseu em 2017. Atualmente entre programar computadores e linguagem humana para conseguir alcançar uma transformação social pela filosofia, sou pai, marido, filho e agricultor como forma de alimentar corpo e alma. Estou pela primeira vez a romper a minha timidez e a expor-me nos meios de comunicação social e em comunidades literárias.

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