A Verdade em Extinção – Parte I

Hoje somos interpolados por amigos e familiares onde cada um expressa-se com sentido de nos convencer das suas certezas, não para partilhar perspectivas. Somos como que eternos adolescentes a querer testar a paciência dos nossos pais impondo a nossa razão, a voluptuosa razão. Claro que o diálogo não é exclusivo do obter razão, mesmo por parte dos nossos amigos e familiares e de uma forma constante. Não, digamos que existe antes um tempero social para a nossa dialética ser saboreada pela razão e não pelo conhecimento, um desejo insaciável por certezas, aquelas que adoçam a amargura da realidade incontrolável, rebelde, que despoleta fenômenos que nos oprimem, ou nos destroem – onde está a capacidade evolutiva em retirar lições dos fenômenos como bebida divina para a nossa transcendência? De tudo isto nasce a era da pós-verdade. Para o filósofo Bruno Latour que cunhou esta palavra, existe agora um claro relativismo de tudo o que era facto enquanto ponto de união nos pilares que sustentam a sociedade, mas o mais surpreendente é que este processo absurdo não é feito pela nossa teimosia intrépida para obter a razão, é, primeiro que tudo, um factor comercial – ou como Platão diria, o conforto é o maior inimigo da evolução civilizacional e a modernidade fez nascer a supressão na base da pirâmide de Maslow, permitindo às massas obter tempo para opinar, mas como o sistema educativo estrategicamente castrou-as do pensamento crítico, os media conduziram ao fabrico de opiniões que mais favorecem o comércio e a internet tornou-se o espaço perfeito, enquanto mais evoluído do que os media tradicionais, para disseminar factos que se assemelham à realidade. Porque não criar grupos que disseminam informação falsa sobre a estabilidade climática por forma a manter o meu negócio rentável? Porque não disseminar informação falsa sobre a geometria do Planeta como forma de impulsionar o radicalismo religioso? A pós-modernidade é a decadência do Humano mecanizado para a rotina produtiva e a verdade é agora uma ração alimentar para o nosso lado intelectual – saciando-se as necessidades Humanas não existem revoltas, esta é a maior lição retirada nos primórdios da revolução industrial aquando das primeiras manifestações sindicalistas.

Na era da pós-verdade, a vítima sofre o processo absurdo de Kafka, tenta viver o quotidiano dos seus sentimentos, saciar a fome e instruir-se enquanto é condenada sem motivo – deverá falecer devido à vontade daqueles que se autoproclamam “donos da verdade” continuarem a ser livres nas suas rotinas.  De forma invertida, os donos da verdade são também eles vítimas desse processo absurdo: revoltam-se porque a sua liberdade está a ser castrada sem aparente gravidade, mas totalmente presos às necessidades numéricas de crescimento dessa patologia mental colectiva que é o mercado financeiro, esse suicídio existencial em que destruímos o nosso habitat, impulsionados por desejos de possuir mais, ou morte dos seus ente-queridos – a masturbação ideológica domina as esferas do diálogo, ansiamos a propagação das nossas ideias, expomos a nossa face obstinada e explodimos num grande grito de revolta perante uma máscara que nos é imposta e que deveria ser retirada, porque é possível morrer de várias maneiras, uma pandemia é apenas mais uma forma de falecer, uma máscara é um utensílio que deverá ser usado com livre-arbítrio, conforme os consumidores o fazem nas suas rotinas diárias. Ambos consideram-se injustiçados, ambos são condenados pelo seu próprio inconsciente. Da mesma forma que serei condenado, entre muitos, como comunista por criticar o sistema financeiro ou como antissemita por criticar as atuações militares de Israel, serei condenado, enquanto medicamente vulnerável, a uma doença porque a maioria pretende a sua liberdade de atuação ou por outros que consideram que ela não existe e é apenas uma forma de opressão emocional através de uma máscara, ou serei condenado enquanto cidadão de um país extremamente pobre à exploração dos grandes mercados e considerado como um animal se tentar fugir do matadouro ao atravessar o mediterrâneo, ou, enquanto pastor de ovelhas palestiniano, condenado à morte por soldados israelitas e o meu povo ser considerado “fantasma” porque, eventualmente, Palestina foi um país que nunca existiu – tudo não passa de manipulação sofista nas conclusões para uma possível verdade, onde toda a empatia Humana é ignorada, os factos são extintos e novos factos são criados como uma autêntica realidade Orwelliana – e por fim, li uma crónica escrita por alguém, que levantou problemas éticos e morais relativamente à eutanásia numa outra crónica anterior, defender que não se pode castrar a liberdade e sanidade dos mais jovens em prol dos mais velhos. Este suicídio intelectual é o sinal patológico do niilismo destrutivo em que o Humano se encontra, é comparável ao ridículo quando os pais impedem o filho de brincar na terra e na chuva porque podem ficar doentes, mas o envenenam lentamente com alimentos que expelem açúcar da sua concentração e revoltam-se por eu ter escrito isto, ou comparável ao absurdo que seria um homossexual organizar um grupo radical para abolir a liberdade de gênero e ficar cheio de raiva por o impedirem de ser homossexual: tudo é permitido, como a experiência anárquica que é o espaço cibernético o revela, menos assassinar o outro, como esse espaço virtual o impede. Enquanto muitos veneram as teorias da conspiração como forma de tornarem-se as ovelhas negras que rejeitaram a ração alimentar, alimentam-se de algo que foi cuidadosamente selecionado para controlar as “anomalias” do pensamento coletivo – não são “chips” nas vacinas ou antenas “5G” que nos controlam, são as nossas vontades consumistas que nos comandam, porque o melhor estado ditatorial é aquele em que o povo autoimpõe a opressão, permitindo-se a ser comandado para aquilo que sacia as suas vontades e o povo nunca se irá revoltar contra esse estado porque o mesmo é uma “sombra” que nada impede – esse estado são as necessidades económicas dos mercados, onde todos estamos inevitavelmente presos nas nossas corridas diárias por fazer dinheiro.

Observemos o sofismo niilista de José Rodrigues dos Santos numa entrevista sobre o seu livro: o holocausto é grave, mas podemos suavizar o seu lado negro se criarmos a ideia de que existia um ato humano numa câmara de gás – a morte instantânea – e que a União Soviética teria muitos mais campos de concentração: a estratégia de manipulação latente é afastar a mente do problema colocando justificativas válidas como disfarce para um escape à dureza crítica da ética: ou porque outros criaram mais campos (mas sem analisar se na quantidade a mais cometeram atos tão hediondos como os de menos), ou porque assumimos um pensamento humano nos meios para atingir um fim (sem refletir no como é possível justificar o fim). Como diria a minha mulher, existe um niilismo anárquico na era da pós-verdade e será essa anarquia que dominará todo o conhecimento válido a tornar-se um relativismo e todas as esperanças por um futuro mais humano um sofrimento existencialista, sem esperança. Conseguiremos evitar a extinção da verdade? Que a resistência ao facilitismo da opinião mastigada nos meios de comunicação virtual seja a resistência francesa contra o nazismo: poucos, mas que nunca deixaram os ideais franceses se extinguirem.

Referências:

Livro “1984” de George Orwell, editado por Antígona

https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/pos-verdade-uma-filha-do-relativismo-cientifico/

https://www.sapo.pt/noticias/atualidade/artigos/deixamos-de-compreender-o-mundo-em-que-vivemos-ficou-demasiado-complexo-e-dispensa-humanos-a-controla-lo-diz-autor

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Nasci, cresci e vivo nos planaltos de Vila Maior, São Pedro do Sul, distrito de Viseu com vista privilegiada para diversas cordilheiras montanhosas. Comecei a escrever poesia em 2005 como forma de escapar à realidade pesada da minha timidez. A natureza, o primeiro fogo da paixão e a necessidade de exprimir injustiças sociais despertaram a minha mão esquerda a escrever como se a minha existência dependesse de tal ação. Enquanto adulto, comecei por trabalhar muito cedo, fui pai muito novo e de todo um tumulto social renasce uma paixão: pensar sobre o que me rodeia, mas em vez de definhar decidi filosofar e nunca mais parei até hoje. Nasceram dois livros de poesia, “Mente (des)Concertante” por parte da editora Poesia Fã Clube e “O Fluxo da Vida” editado na plataforma Amazon. Só mais tarde, licenciei-me em Engenharia Informática pelo Politécnico de Viseu em 2017. Atualmente entre programar computadores e linguagem humana para conseguir alcançar uma transformação social pela filosofia, sou pai, marido, filho e agricultor como forma de alimentar corpo e alma. Estou pela primeira vez a romper a minha timidez e a expor-me nos meios de comunicação social e em comunidades literárias.

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