Invertem-se os tempos, extinguem-se as vontades – Parte I

“O cultivo da imagem, enquanto propósito, envenena o colectivo Humano. Para Fernando Pessoa, os espelhos deveriam ser todos proibidos”

Humano é um animal caracterizado por uma necessidade de colectivo e uma afirmação de propósito, o animal político de Aristóteles. A ausência de consciência perante as características sociais de uma alcateia de lobos, ou a solidão do urso, induzem ao raciocínio de que somos a única espécie a ser criada à imagem e semelhança de Deus, o Patriarca, e a partir deste ponto de vista, comprimido por uma violência sem limites aplicada àqueles que dele tentavam distanciar-se, muitas perversões são propagadas desde longínquas gerações anteriores. Uma doença mental de superioridade aflige-se na modernidade. O cultivo da imagem, enquanto propósito, envenena o colectivo Humano. Para Fernando Pessoa, os espelhos deveriam ser todos proibidos – segundo ele, a Natureza forneceu-lhe o dom de não poder ver a sua própria cara, de não conseguir fitar os seus próprios olhos e só um ritual de humilhação e vulnerabilidade como o de ajoelhar-se e curvar-se perante a água num rio ou num lago, só nesse ritual simbólico ele poderia fitar a sua própria imagem. O privilegiado observa-se no espelho e na sua mente imagens são criadas de superioridade, o bípede em apoteose que nunca mais se ajoelhará para receber a dádiva de se conhecer pelo ponto de vista de quem o critica.

Ainda não é claro, mas a viagem ao mundo do outro lado do espelho é através de um vidro deturpador criado pelo regulador da meritocracia. Uma lei construída com palavras de múltiplos significados é aberta a interpretações – idealmente, interpretações apenas realizadas por uma consciência colectiva – o mesmo encontramos na generalidade da ética meritocrática: não seremos punidos ou premiados por algo que não é da nossa responsabilidade, que está fora do nosso controlo(1). Entre o cultivo dos valores de produtividade e a competição académica para escalar o rendimento, encontramos uma discriminação sociopata: profissões essenciais como recolha de lixo, limpeza urbana, canalização, ligações elétricas, agricultores e pescadores que alimentam as grandes cidades, todos eles têm baixos rendimentos devido a não pertencerem aos grandes ordenados do trabalho qualificado. Se um agricultor for doutorado, já pode ter prestígio pelo que semeia e recolhe, consequentemente recebendo um salário digno pelo seu trabalho árduo? A ética referida defende que o merecedor não se responsabiliza pelo que está fora do seu âmbito, tal como quando a Iniciativa Liberal propõe uma linha de crédito para estudantes académicos (o Estado não deve responsabilizar-se pela igualdade intelectual), pois só aquele que tem coragem de investir um grande valor pode receber o mérito de uma grande recompensa: se esse valor é emprestado com um grande retorno em juros, ou se ele não consegue pagar porque a grande economia global entrou em recessão e o seu trabalho qualificado extinguiu-se, tudo isto é exterior ao grande valor ético da meritocracia, porque para não ser despedido terá de encontrar valor no que fornece; quando muitos já fornecem o mesmo valor, terá de se reinventar para continuar a ser merecedor.

Entre o ver e o observar emana a alquimia do absorver. A partir de múltiplas perspectivas, o Humano interpreta o que o rodeia com filtros poluídos no seu interior. O viés da confirmação, os traumas, a teimosia ideológica são as lentes que o humano usa involuntariamente após serem colocadas numa experiência de escolha condicional imposta pelo mundo ao seu redor. Competir necessita de alimento proveniente do complexo de inferioridade. Thomas Piketty denota a desigualdade moderna como sendo aparentemente justa, ao sermos livres para perseguirmos lunaticamente os píncaros das escadas de promoção corporativa ou de competição empreendedora selvagem, sermos livres para sonhar a esperança de encontrar riqueza, como espanhóis no novo mundo sedentos de ouro que os cega à ética em dívida nas suas atrocidades, e sermos livres para viver numa rotina de desesperos porque consideramo-nos pouco inteligentes para tais corridas intelectuais, logo não merecedores – uma estratégia de manipulação em massa, como diria Noam Chomsky, por forma a eliminar, à partida, uma grande parte da competição. É também Thomas Piketty que coloca os olhos na consciência e entende a loucura em que o mundo se encontra: a enorme concentração de riqueza em muitos poucos humanos e a pouca que sobra para a competição de muitos, juntando a automação e o burnout de quem se reinventa constantemente (que ocupa dois ou mais postos de trabalho) para escalar o seu merecimento, tudo isto oprime os participantes num mercado livre para a escassez de oportunidades. A sociedade do cansaço, como nos caracteriza Byung-Chul Han, encontra na distração o analgésico perfeito para a ansiedade diária(2); Nietzsche explica a grande ansiedade do Humano amedrontado pela possibilidade de ser expulso da tribo – numa tribo global, a ilusão de separação encontra-se no actuar de forma diferente dos seus pares, logo é necessário lutar pelo mérito, tornando-se produtivo de acordo com as regras de um mundo que lhe é imposto desde que nasceu e participou nas grandes instituições educativas. Distração é tudo o que constitui a conversa da moda com os seus amigos e colegas, como que analogia ao psicotrópico que os habitantes de “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley tomavam para sentirem-se felizes constantemente. Emoções negativas num mundo confortável pertencem aos sete pecados da modernidade líquida, logo deverão ser ignoradas, diluindo-se na multidão com a opinião de que hoje em dia nada é verdadeiro ou falso, apenas versões geradas por um livre-arbítrio que todos merecemos. Observar os nossos semelhantes e as suas práticas e ver confirmações para as nossas ideologias, absorve-se alimento para o inseguro que reside em nós. O fundamentalismo é o caminho mais fácil de percorrer por todos nós, Humanos, em busca da economia cerebral – o teorema comportamental mais comum – por forma a não impor ainda mais cansaço pelo simples acto de autorreflexão sobre o que nos rodeia, tornando-se simples consumir o que já foi processado por outros, o fast-food para o pensamento. O privilegiado, consumidor de conteúdos em dispositivos fabricados em nações pobres – as culturas abominadas pelo privilegiado – sentado junto a um computador num escritório com mesa de bilhar e onde pode trabalhar e divertir-se com constantes pausas para consumir conteúdos, é ele o criador ou apoiante de partidos que propagam uma demagogia de que estrangeiros assaltam o pouco que sobra após o muito que alimentou uma elite restrita. Xenofobia é uma consequência do instinto de sobrevivência perante a limitada visão de onde se encontram os recursos. A ilusão de inferioridade, a ameaça equivocada proveniente de quem é, na realidade, semelhante ao nosso ser, o isolamento dos urbanistas nos seus escritórios e apartamentos, tudo o que é inferior à evolução da consciência manifesta-se na modernidade.

A realidade imaginada, expressada por Yuval Harari, é o tecido da confiança social. Um abastado confia na comida cozinhada por um simples cidadão, pois o cidadão sonha um dia ser rico e toda a estrutura legislativa e burocrática impede o cozinheiro de usurpar a riqueza do seu aristocrata, tal como os religiosos radicais colocam cordas manipuladoras nas mentes das suas mulheres analfabetas. Os pescadores ficam presos no mar enquanto os seus humanos semelhantes em terra passeiam junto à costa e saboreiam o que eles pescam, mas eles não passeiam nem fazem serão num restaurante porque o trabalho não qualificado é árduo e o seu pai ensinou-lhe a honra do utilitarismo da sua ação para alimentar o povo em terra, porque o pouco ganho é melhor que nada. Toda esta confiança na desigualdade é um contraste com a desconfiança na igualdade. O Humano acorda do grande sono num mundo simulado, quando esse mundo se apresenta equalitário, sem guerras e competitividade; o povo abomina todo aquele que se apresenta como comunista, como se ele anunciasse o fim das liberdades individuais – a normalização do pensamento cataloga comunismo como uma ideologia sanguinária ditatorial – regressando à justa desigualdade moderna identificada e combatida por Thomas Piketty, justa porque somos livres, mas na realidade estamos presos em decisões condicionadas a uma liberdade de escolha fabricada.

O incentivo ao mérito fornece oportunidades para que muitos desenvolvam, por exemplo, negócios de pesca, mas só o monopólio garante o bilionário, caso contrário muitos empreendedores no mesmo sector forçam involuntariamente a diluição dos lucros entre eles num mundo limitado em recursos naturais – a grande explosão económica europeia que sustentou a revolução industrial, acontece após um grande fornecimento de recursos provenientes do “novo mundo” e uma grande margem de lucro ao extrair com mão-de-obra gratuita (a explorar na 2º parte deste artigo). Dinheiro é um sistema de valor dividido em muitas partes de pequena dimensão (moedas, notas, títulos financeiros, propriedades) por forma a contabilizar desde o que tem menos valor até ao que tem mais. O termo Capitalização de Mercado é o quanto determinado valor material, tangível ou intangível, acumulou dinheiro nos seus cofres. Qualquer representação financeira de uma nação é de valor limitado, consequentemente existindo inflação e deflação(3) – se o valor da moeda cresce em relação à de outra nação, inflaciona a moeda porque a nação venceu a competição, deflacionando os custos de importação; se a outra nação fica mais rica, a nossa entra em deflação monetária – as nossas poupanças perdem valor monetário, mesmo com taxas remuneratórias atractivas – e os bens materiais importados são mais caros, logo inflação material. É no extrativismo que uma nação se torna mais poderosa, é através da sua Capitalização de Mercado que domina o mundo – quando não tem extração interna, os mecanismos de livre circulação de bens e serviços permitem a extração no estrangeiro enquanto forma de rendimento interno (os subprodutos financeiros, a maior exportação dos países mais ricos). As nações ricas extraem recursos em nações pobres e odeiam a livre circulação desses mesmos “pobres” para o seu espaço privilegiado. Estes dinamismos de mercado são inerentemente limitadores de quantos podem ser os mais ricos do mundo. Mesmo que, em vez de pensarmos em oito mil milhões de humanos pensemos em mil milhões de famílias, as mesmas não podem ser todas bilionárias, pois, tal como os empreendedores num mesmo sector, irão diluir o valor monetário devido a atingirem rapidamente o limite máximo da moeda circulante – e imprimir moeda é diluir novamente o valor capital de todos os bens materiais.

Para todos nós Humanos sermos milionários, não podem existir bilionários ou “trilionários” porque a quantidade de moeda em circulação não permite que todos nós tenhamos Capitalização de Mercado nesses valores astronómicos. Esta explicação simplista do sistema monetário não pretende servir de tese, apenas uma introdução ao conceito subjacente que Thomas Piketty encara já com uma enorme preocupação: a imagem de mérito e de utilidade oferecida por todos nós aos grandes bilionários simboliza uma ditadura invisível, um cultivo de imagem do grande imperador, um clima predatório das nossas mentes focadas na eficiência e produtividade, bem como uma predação dos recursos em simbiose com o desastre climático e natural.

Esta normalidade social moderna é uma perversão ideológica. Somos edificadores de ideologias por forma a cumprir as nossas anormalidades. Convencer os outros é eternizar a nossa existência egoísta, fazê-los absorver o que pretendemos oferecer. Fernando Pessoa considera a normalidade como manifestação de actos em sociedade – como as transações comerciais e a arte nos artistas – onde os sentimentos são aspectos pessoais da nossa existência, nunca deveriam ser transpostos para a sociedade. Mas, é também Fernando Pessoa que observa o quanto estamos cheios de superstições, religiosidades, esquisitices que impomos ao colectivo: ele descreve que se isto deveria ser pessoal, a tragédia materializa-se quando se tornam sociais e é aqui que começa a anormalidade do privilegiado que tem poder para impor as suas vontades ideológicas: é também ele que tem poder de marketing para demonizar lutas igualitárias, como a igualdade entre mulheres e homens, liberdade de género, respeito pelos trabalhadores, o mérito dos agricultores e pescadores por receber salários dignos de trabalhos qualificados.

Agora, aquele que se admira no espelho não é apenas narciso, é a consequência moral do merecimento. Competir é uma metodologia de evolução colectiva, mas como o Humano não é um ser divino perfeito, a sua anormal dicotomia entre estar consciente de que não é perfeito e procurar segurança numa ideologia como única para a resolução de tudo – o vício por padrões descritivos em reducionismos causais – cria o caos social e natural em que vivemos.

Abandonando o espelho, o privilegiado, patriarca e poderoso, absorve a solidão da sua mansão cheia de objectos brilhantes e uma escuridão emocional. Só o resgate de um colectivo cooperante, onde cooperar é a maior forma de mérito quando se assiste serenamente à evolução do colectivo, é que o Humano conseguirá recuperar-se dos traumas acumulados até ao momento, reerguer-se das necessidades vazias criadas pelo ocidente quando necessitavam de mão-de-obra em grandes cidades aquando da revolução industrial, voltar a absorver o preenchimento da contemplação da vida. Cooperar é solucionar problemas comuns. Tempo é a dádiva fornecida àqueles que meditam sobre ética colectiva. Meritocracia, conforme está definida, não permite uma reflexão profunda para um colectivo evolutivo, é antes um psicotrópico para os que têm esperança por atingir mérito e uma perversão sem limites para quem atingiu o monte Olimpo do mérito corrente, uma doença mental (cientificamente é claro o apocalipse derivado da morte de insectos em massa pelos pesticidas/herbicidas, mas o dinheiro fala mais alto para a Bayer-Monsanto) em todos nós que só queríamos um abrigo e companhia, como a diversão praticada pelos nossos antepassados recolectores. Nas próximas partes deste artigo explorarei o que é utilitarismo, a escravidão, distopias, ansiedades políticas e uma nova sociedade descentralizada e horizontal.

 

Bibliografia útil:

  • “A Ditadura da Felicidade: como a ciência da felicidade controla as nossas vidas” de Edgar Cabanas e Eva Illouz
  • Explicação analítica sobre as limitações do crescimento de rendimento capital versus rendimento da economia: “O Capital no Século XXI” de Thomas Piketty

Links úteis:
Ética meritocrática e a sua perversão
A sociedade do cansaço
Inflação material e a queda do poder de compra na economia do dólar americano deflacionário

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Nasci, cresci e vivo nos planaltos de Vila Maior, São Pedro do Sul, distrito de Viseu com vista privilegiada para diversas cordilheiras montanhosas. Comecei a escrever poesia em 2005 como forma de escapar à realidade pesada da minha timidez. A natureza, o primeiro fogo da paixão e a necessidade de exprimir injustiças sociais despertaram a minha mão esquerda a escrever como se a minha existência dependesse de tal ação. Enquanto adulto, comecei por trabalhar muito cedo, fui pai muito novo e de todo um tumulto social renasce uma paixão: pensar sobre o que me rodeia, mas em vez de definhar decidi filosofar e nunca mais parei até hoje. Nasceram dois livros de poesia, “Mente (des)Concertante” por parte da editora Poesia Fã Clube e “O Fluxo da Vida” editado na plataforma Amazon. Só mais tarde, licenciei-me em Engenharia Informática pelo Politécnico de Viseu em 2017. Atualmente entre programar computadores e linguagem humana para conseguir alcançar uma transformação social pela filosofia, sou pai, marido, filho e agricultor como forma de alimentar corpo e alma. Estou pela primeira vez a romper a minha timidez e a expor-me nos meios de comunicação social e em comunidades literárias.

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