Os vírus são como todas as coisas que fazem mal (lagarto, lagarto!); também fazem bem. Não temos assunto para conversa? O futebol e a justiça cheiram mal? Ora essa! Falamos sobre o vírus. Digamos que tornou-se viral, como dizem nas redes de comunicação. Não se fala noutra coisa. Ultrapassou as modas internéticas e chegou a todos. Contradição das contradições, o que é viral nas ditas redes sociais, é muito visto, é sucesso, está do lado dos vencedores; portanto é bom. Não há como escapar a esta lógica com laivos de aristotélica.
E é bom por mais razões. Por exemplo, aproveitamos para substituir mais algumas das nossas palavras por equivalentes em língua inglesa. Não as traduzimos nem as adaptamos; plantamo-las tal qual. Esta operação que as televisões fabricam e propagam é, também ela, viral. A versão 19 do vírus Corona trouxe-nos algumas novidades. Começam pelo nome que tornaram corrente – “Coronavírus”. Se a televisão o usa é porque é assim, dirão. O que a televisão diz, escreve-se, adota-se, multiplica-se. É mais do que lei; é dogma.
“Coronavírus” em vez de vírus Corona? Onde é que isso se pode dizer e escrever como sendo da nossa língua? Percebo que não digam Covid-19 (ou com maiúsculas, não sei), o nome de código dado pela Organização Mundial da Saúde. Covid-19 não soa, não é telegénica – pensarão. Mas, vejam: ninguém diz “flu vírus” ou “influenza vírus” para designar o vírus da gripe. Muito menos se colam as duas palavras, como fizeram neste caso do vírus Corona. Não dizemos “gripevírus.”
Sigo, com algumas reservas, as linhas com que se cose o Acordo Ortográfico. Mas não vejo o mesmo tipo de empolgamento (muitas vezes com maior intensidade dramática e fanática que a do futebol) com este tipo de barbarismos com que, nós, os bárbaros de nós próprios, procedemos.
Provavelmente, será por não gostarmos de nos parecermos connosco próprios. Por desconfiarmos de nós e não gostarmos da imagem que reflete o que julgamos ser. Preferimos ser estrangeirados, imitadores e seguidores dos que mais mandam no mundo; esse será o nosso ideal. E assim morrem, ou se atrofiam, as línguas, as identidades, as culturas. Assim perdemos essências de comunidade e nem queremos saber (d)o que perdemos.
Outro anglicismo (“link”) muito utilizado no léxico informático, apanha a corrente viral deste Corona-19 e finca os pés no território da oratória televisiva que infeta toda a gente: ministros, jornalistas, comentadores e opinadores sobre tudo e sobre nada; até os especialistas. E, claro, pega-se em série. Há dias (não precisa de ser “há dias atrás”, como também está a ficar viral) ouvi a ministra da Saúde a utilizá-lo com aquela prontidão de quem não sabe que a palavra não é portuguesa e, pior, que não sabe traduzi-la. Dizia a senhora que ainda não tinha sido identificado “o link epidemiológico ao Norte de Itália”, onde uma pessoa teria sido infetada. Não há ligações, elos, cadeias que sirvam de inspiração ao falar em português da ministra. A primeira palavra que lhe vem à cabeça não é portuguesa; é inglesa. E isso condiciona o pensar, tem significado cultural e político e gera consequências. Para mais, vindo de tão alto.
É já vasta e numerosa a proliferação de “links” que nos põem a falar encaixados numa fôrma, com os mesmos tiques e a mesma redutora unidimensionalidade idiomática. Ainda sou do tempo em que as impressoras “printavam”. Agora, vá lá, já não “printam”, mas os “links” multiplicaram-se como vírus.
Artigo publicado no dia 12 de março de 2020 na rubrica “Cata-Ventos” do semanário “A Reconquista”
Nasce em Castelo Branco em 1944. Em 1961 vai estudar Físico-Químicas para a Universidade de Coimbra onde com a crise e a repressão académicas nasce a sua consciência política. No ano de 1969 integra os quadros do Serviço Meteorológico Nacional. Mobilizado para a Guiné Bissau, consegue no entanto ser destacado para Timor-Leste, onde permanece entre 1973 e 1974 a chefiar o Serviço Meteorolóqico.
Em 1984 passa a ser um dos rostos da informação meteorológica na RTP, e dez anos mais tarde da TVI, onde permanece até 1998. Regressa à sua cidade natal em 2002 para tentar desenvolver um projeto-piloto de regionalização de atividades meteorológicas.
É autor dos livros “Mudam os Ventos Mudam os Tempos – Adagiário Popular Meteorológico” (1996), “Voltar a Timor” (1998), “Podia Ser de Outra Maneira (2000) e dos livros de poesia "Corpo Aberto" (2016) e "De muitos ventos e utopia" (2018).
Com um currículo extenso, podemos resumir a vida do “poeta do tempo” como: meteorologista e cidadão no tempo que lhe calhou nesta vida de entre duas noites.Em 1984 passa a ser um dos rostos da informação meteorológica na RTP, e dez anos mais tarde da TVI, onde permanece até 1998. Regressa à sua cidade natal em 2002.
É autor dos livros “Voltar a Timor” (1998), “Podia Ser de Outra Maneira (Imagem do Corpo)” (2000), e da antologia “Mudam os Ventos Mudam os Tempos – Adagiário Popular Meteorológico” (2002).
Com um currículo extenso, podemos resumir a vida do “poeta do tempo” como: meteorologista e cidadão no tempo que lhe calhou nesta vida de entre duas noites.