O vírus do “Politicamente Correto”

Devo confessar que sempre olhei de esguelha esta coisa do “politicamente correto”. Sempre me perguntei: por que não dizem, por exemplo, socialmente correto, comunicacionalmente correto, idiomaticamente correto? Concordaremos que o “politicamente” não dá para revelar e engolir tudo. Quando nos isolamos no “politicamente”, ficamos reduzidos à estreiteza do preto e branco de que os poderes políticos e comunicacionais tanto usam e abusam. O “politicamente correto” não quer que sejamos carne ou peixe ou qualquer coisa que mexa, crie e alimente.

Nos últimos tempos, o que é “viral” passou a ter apreço de moda e reproduz-se com uma aceleração que não permite acompanhamento, mesmo na versão fisiológica que investe em todos os invernos. Tirando essas, adoramos todas as doenças virais.

Já aqui escrevi sobre a epidemia do “aquilo que é”. Já não discutimos futebol, mas “aquilo que é” futebol; já não falamos do governo, mas “daquilo que é” o governo. É “politicamente correto” falar assim. Com tiques que repetimos palavra-sim, palavra-não e com velocidades sustentadas pelo vírus do “quilómetros hora”, como agora proclamam. Sobretudo nos canais de televisão. A Física prova que não há velocidades assim, mas os vírus infetam-nos a todos e não temos como enfrentá-los.

Outro exemplo. Será “politicamente correto” não contestar a impunidade da Banca, os seus processos e a atuação dos seus excelentíssimos cultores, no que toca ao tanto mal que faz e continua a fazer? Banca que, não esqueço, vivia do que lhe emprestávamos para que o pusesse à disposição de quem quisesse comprá-lo. Agora, temos de pagar para lhe emprestarmos o que vão emprestar e, mesmo assim, é o que se sabe de hecatombes que, ainda por cima, temos de suportar, pois na Banca nem se pode beliscar. Há muito que estou a ponderar abolir do meu vocabular esse tal “politicamente correto”. Veremos. Até ao lavar estas linhas pode ser vindima.

As voltas e contravoltas que o mundo dá. Dizem que a expressão foi socializada depois do apelo, feito pelos negros americanos nos anos de 1950, para que fossem tratados pela sociedade norte-americana com modos “politicamente corretos”. Também não gosto de usar a bengala do “inacreditável!” Nem a do “ao que chegámos!” Mas…

Para muitas pessoas, o “politicamente correto” é sinónimo de moderação, respeitinho, maneiras, cálculo, equilíbrio, justeza, tolerância, embora lhe tenham inventado outra (quase inútil) bengala: “tolerância zero”. Para outras pessoas, é norma, moda, nem carne nem peixe, não pensar fora da caixa, afunilar, não escolher, chapéu de chuva, deixar andar, falsos consensos, quartel general em Abrantes.

E ainda há o “politicamente correto” do insuportável incorreto da política de governar e se lhe opor. Nem sei que diga. Ataques, contra-ataques, autoelogios, intolerância, machismos de qualquer género, juras quebradas, exaltação de próprias e impróprias qualidades. Tudo dito e redito como se pertencessem a uma esfera angelical, a do “politicamente correto”.

Aqui para nós que ninguém nos ouve, se não tivéssemos conseguido sair do modo (e da moda) do “politicamente correto”, Galileu não se movia com a Terra, Fleming não tinha entrado na casa da penicilina, o 25 de Abril continuava atolado no pântano irrespirável de não ter existido, etc, etc.

Cá por mim, sem ofensa para quem pensa mais e melhor do que eu, já me decidi: acabo de limpar do meu dicionário esse tal “politicamente correto”. Acho que não vou arrepender-me.

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Nasce em Castelo Branco em 1944. Em 1961 vai estudar Físico-Químicas para a Universidade de Coimbra onde com a crise e a repressão académicas nasce a sua consciência política. No ano de 1969 integra os quadros do Serviço Meteorológico Nacional. Mobilizado para a Guiné Bissau, consegue no entanto ser destacado para Timor-Leste, onde permanece entre 1973 e 1974 a chefiar o Serviço Meteorolóqico.
Em 1984 passa a ser um dos rostos da informação meteorológica na RTP, e dez anos mais tarde da TVI, onde permanece até 1998. Regressa à sua cidade natal em 2002 para tentar desenvolver um projeto-piloto de regionalização de atividades meteorológicas.
É autor dos livros “Mudam os Ventos Mudam os Tempos – Adagiário Popular Meteorológico” (1996), “Voltar a Timor” (1998), “Podia Ser de Outra Maneira (2000) e dos livros de poesia "Corpo Aberto" (2016) e "De muitos ventos e utopia" (2018).
Com um currículo extenso, podemos resumir a vida do “poeta do tempo” como: meteorologista e cidadão no tempo que lhe calhou nesta vida de entre duas noites.Em 1984 passa a ser um dos rostos da informação meteorológica na RTP, e dez anos mais tarde da TVI, onde permanece até 1998. Regressa à sua cidade natal em 2002.
É autor dos livros “Voltar a Timor” (1998), “Podia Ser de Outra Maneira (Imagem do Corpo)” (2000), e da antologia “Mudam os Ventos Mudam os Tempos – Adagiário Popular Meteorológico” (2002).
Com um currículo extenso, podemos resumir a vida do “poeta do tempo” como: meteorologista e cidadão no tempo que lhe calhou nesta vida de entre duas noites.

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