O furacão (de) Trump

Bem sei que estamos fartos da presidência de Trump, mas não posso deixar de contar mais uma das suas façanhas pelos territórios da “verdade alternativa”. Desta vez, meteu-se com a minha profissão. Já o tinha feito ao negar o aquecimento global e as alterações climáticas induzidas. Agora meteu-se com a evolução do ciclone tropical “Dorian” que, como sabem, devastou as Bahamas e causou problemas nos EUA.

No dia 1 de setembro, afirma, sem base para o fazer e contra o que era previsto pelo centro de vigilância de furacões dos EUA, que o Estado do Alabama iria ser “atingido, com mais força do que previamente tinha sido antecipado”, pelo furacão “Dorian”.

Poucas horas depois, a administração federal do oceano e da atmosfera (NOAA) difunde uma diretiva interna a proibir os meteorologistas de emitirem “qualquer opinião” sobre as palavras do presidente. Estava em causa o alarme produzido no Estado de Alabama pela declaração de Trump que, se fosse cientificamente credível, obrigava a respostas de emergência de proteção civil naquele território.

Inundado de chamadas telefónicas de cidadãos do Alabama preocupados com a mensagem de Trump, o serviço meteorológico estadual do Alabama publica uma declaração a desmentir o presidente dos EUA, afirmando taxativamente que o Alabama “não sofrerá qualquer impacto do furacão”.

Três dias depois, a direção da NOAA envia nova mensagem avisando os meteorologistas de que não podem comentar a apresentação televisiva de Trump mostrando um mapa (de 29 de agosto) em que introduzia uma linha, inscrita manualmente, abrangendo a parte sueste do Alabama; linha que não constava na previsão de evolução da tempestade. Fazia isto servindo-se de um mapa, publicado cinco dias antes, em que era apresentada a pluma da probabilidade de evolução numa fase em que o ciclone tropical “Dorian” ainda evoluía a sueste das Bahamas. A adulteração era grosseira e saltava à vista. A imprensa dos EUA não encontra explicação para esta inadmissível intromissão do presidente numa esfera técnico-científica com regras de trabalho respeitadas pelos poderes políticos.

Sob anonimato, por medo de represálias, um meteorologista confessa ao diário Washington Post: “É a primeira vez que me sinto pressionado pela hierarquia para não dizer a verdadeira previsão”. Implicitamente, insurge-se contra a violação de normas de ética e deontologia profissional no âmbito da relação entre a meteorologia e a proteção civil: “Uma das coisas que aprendemos é a dissipar rumores imprecisos, que era o que estava a acontecer”. E conclui sustentando o que o serviço meteorológico do Alabama fizera: “uma previsão; exatamente aquilo que é pago para fazer”.

“Fico sem palavras”, confessa, por outro lado, um membro da direção de uma associação de cientistas. “Se politizarmos a meteorologia, o que sobra para politizar? Estamos a assistir a este tipo de pressão sobre os cientistas em todo o governo e é uma tendência que vem aumentando.”

Esta preocupação por intromissões do presidente Trump não é nova. Em 2018, uma sondagem a cientistas de 16 agências federais desvendou a existência de um ambiente de medo e autocensura. Ambiente que resulta de constrangimentos impostos pelo governo federal que chega a rasurar provas científicas por conveniência ou perversão política.

Muitas vezes, os governantes escondem os meios para atingir os fins. Trump, vai mais longe. Banaliza, manipula, adultera dados e factos, à vista de todos. Enfim, há eleitores que votam em tipos assim. E ainda dizem que o povo é sábio.

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Nasce em Castelo Branco em 1944. Em 1961 vai estudar Físico-Químicas para a Universidade de Coimbra onde com a crise e a repressão académicas nasce a sua consciência política. No ano de 1969 integra os quadros do Serviço Meteorológico Nacional. Mobilizado para a Guiné Bissau, consegue no entanto ser destacado para Timor-Leste, onde permanece entre 1973 e 1974 a chefiar o Serviço Meteorolóqico.
Em 1984 passa a ser um dos rostos da informação meteorológica na RTP, e dez anos mais tarde da TVI, onde permanece até 1998. Regressa à sua cidade natal em 2002 para tentar desenvolver um projeto-piloto de regionalização de atividades meteorológicas.
É autor dos livros “Mudam os Ventos Mudam os Tempos – Adagiário Popular Meteorológico” (1996), “Voltar a Timor” (1998), “Podia Ser de Outra Maneira (2000) e dos livros de poesia "Corpo Aberto" (2016) e "De muitos ventos e utopia" (2018).
Com um currículo extenso, podemos resumir a vida do “poeta do tempo” como: meteorologista e cidadão no tempo que lhe calhou nesta vida de entre duas noites.Em 1984 passa a ser um dos rostos da informação meteorológica na RTP, e dez anos mais tarde da TVI, onde permanece até 1998. Regressa à sua cidade natal em 2002.
É autor dos livros “Voltar a Timor” (1998), “Podia Ser de Outra Maneira (Imagem do Corpo)” (2000), e da antologia “Mudam os Ventos Mudam os Tempos – Adagiário Popular Meteorológico” (2002).
Com um currículo extenso, podemos resumir a vida do “poeta do tempo” como: meteorologista e cidadão no tempo que lhe calhou nesta vida de entre duas noites.

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