Assistimos cada vez mais, nos órgãos de comunicação, a uma pressão desmedida dos grandes agrários, unidos em torno da Confederação da Agricultura Portuguesa (CAP), pressionando para a realização de transvases a partir da Bacia Hidrográfica do Douro (captação na barragem do Pocinho), procurando suprir o défice hídrico existente no Algarve, consequência da seca hidrológica. Recordamos que o consumo de água na região algarvia tem vindo, ano após ano, a aumentar graças à aposta numa agricultura super-intensiva, baseada no regadio. Além da rega do olival, amendoal e vinha temos uma penetração crescente dos frutos vermelhos e do abacate, mas também da floricultura, altamente consumidores em água, para além de perdas de significativas, quer a nível da rega, que se aproxima dos 40%, quer do abastecimento urbano, em torno dos 30%.
Partindo do princípio que é tecnologicamente possível realizar essas transferências de água entre bacias, tal teria custos astronómicos, a serem pagos por todos os cidadãos nos respetivos impostos. Teoricamente, os transvases do Norte para o Sul teriam uma parte significativa em túnel e múltiplos dispositivos de bombagem, o que multiplicaria o preço da água entre 5 a 10 vezes (valores conservativos). Por outro lado, as questões ambientais seriam tremendas para a biodiversidade, com a destruição da fauna piscícola nativa e o aumento das espécies invasoras, além da degradação da qualidade dos recursos hídricos. Além do mais, não seria possível o cumprimento da Diretiva Quadro da Água, a que estamos obrigados, pelo que acreditamos que a União Europeia inviabilizaria tal dislate.
É preciso recordar que Trás-os-Montes e as Beiras sofrem também periodicamente o efeito de secas recorrentes, como em 2022, e a ideia que temos água a mais no Norte está só na cabeça dos grandes agrários, desejosos de multiplicar os lucros com esta ideia peregrina das autoestradas da água (ideia, aliás, que também consta nos Programas dos 3 partidos de direita com assento parlamentar), demonstrando, afinal, uma ignorância absoluta pelos custos e consequências ambientais.
Devemos salientar que, quase metade das massas de água superficiais da Bacia do Douro estão já abaixo do Bom Estado Ecológico, predominando a poluição difusa por nutrientes com origem agrícola, o mesmo acontecendo na Bacia do Tejo, não tendo havia indicações de melhoria, o que é um fator preocupante. E note-se que 70 a 80% do consumo urbano nestas Bacias dependem das captações superficiais em albufeiras. Acresce que os cenários climáticos demonstram uma diminuição substancial dos escoamentos nas próximas décadas. Não, não há água a mais no Norte do país e até é mesmo duvidoso que o incremento da área de rega proposto pelo Ministério da Agricultura nestas áreas seja sustentável.
Chamamos também a atenção que a Região Demarcada do Douro, sendo a região vitivinícola demarcada e regulamentada mais antiga do mundo, e porta-bandeira de elevados valores patrimoniais, culturais, estéticos e ecológicos, enferma, desde há décadas, de problemas específicos de poluição provocados pela indústria vitivinícola, fileira dominante e praticamente exclusiva. Os principais problemas detetados tem a ver com os consumos de água e as condições em que são gerados os efluentes vinícolas, originando fenómenos de poluição orgânica, com impacto nas comunidades aquáticas e na qualidade da água para consumo humano.
Fazer mais barragens é também duvidoso. A ideia peregrina que, “nem mais uma gota de água para o Oceano”, além de inexequível, implicaria a completa destruição dos nossos rios e dos respetivos serviços de ecossistema. Saliente-se que as barragens também têm um ciclo de vida, cuja duração é definida pela diminuição da capacidade de armazenamento das respetivas albufeiras. Esta situação está associada com a perda de solo. Por exemplo, uma floresta de monocultura, com incidência no eucalipto, é extremamente vulnerável aos fogos e é responsável pelo acentuar da desertificação, com a concomitante redução da infiltração da água, do que resulta o aumento do escoamento superficial (picos de cheia mais intensos), que é o vetor fundamental para o aumento da erosão. Ora, estes sedimentos vão-se depositar nas linhas de água e, posteriormente, nas albufeiras, diminuindo a sua capacidade de armazenamento. Esta sedimentação nas albufeiras vai acabar por, mais cedo ou mais tarde, ditar a inutilidade das próprias barragens. Assim, muitas das albufeiras do Douro necessitam já de ser desassoreadas (o que praticável apenas em albufeiras de menor dimensão).
Paralelamente, nos diversos Planos de Gestão de Região Hidrográfica para os próximos 7 anos nada consta de captações e transvases para o Sul. Seria bem melhor que nas bacias deficitários do Algarve, bem como do Sado e Mira, as zonas mais críticas, se procurasse adaptar a agricultura para as condições climáticas existentes. E é esta a questão fulcral que os especialistas têm alertado: a questão do solo é prioritária e tem-se vindo a verificar uma diminuição da fertilidade (com reflexo na diminuição da produção de cereais e outras culturas), sendo essencial aumentar a matéria orgânica nos solos e apostar na agricultura regenerativa. É também necessário atrair gente para os territórios do interior, de modo a controlar os incêndios florestais e diminuir os riscos de perda de solo. Ora, estamos a caminhar para um modelo de “desenvolvimento” completamente ao arrepio dos cenários climáticos.
Finalmente, é também necessário aprender com Espanha, onde os transvases têm vindo a ser fortemente limitados pela contestação das populações, nomeadamente na Bacia do Tejo, onde as transferências para a Bacia do Segura (Múrcia) têm criado grandes conflitos sociais. Recentemente, 70 organizações ambientalistas do nosso país apresentaram 15 exigências para a defesa dos nossos rios face à desenfreada corrida aos nossos recursos hídricos, superficiais subterrâneos. Neste último caso é já alarmante a contaminação dos lençóis freáticos na zona costeira do Algarve, derivado da intrusão salina, consequência da exagerada e insustentável captação de água nos aquíferos. As multinacionais de capitais de risco instaladas no Sul do País, que pagam a água a valor inferior ao preço do custo, como no Alqueva, representam elas próprias um risco ambiental e social. Note-se que neste perímetro de rega, tem-se verificado uma clara concentração da propriedade, pelo que os pequenos agricultores têm abandonado as suas terras, engolidos pelos grandes grupos económicos internacionais.
Professor Catedrático da UTAD e membro do Conselho Geral da Universidade. Doutorado em Ciências Florestais. Especialista na área dos Recursos Hídricos e Ecologia Aquática. Investigador do CITAB. Membro do Conselho Nacional da Água (em representação do Conselho de Reitores) e do Observatório Independente dos Fogos Rurais (nomeado pela Assembleia da República).