Esta semana tivemos a notícia triste de que bell hooks nos deixou, mas que ficou um legado de resistência, de teoria feminista interseccional e de luta, que inspira muitas de nós, todos os dias. Escrevo bell hooks com letra minúscula, pois a própria nos dizia que “o mais importante dos meus livros é o conteúdo e não quem eu sou”.
Era professora, intelectual, uma das maiores figuras do considerado feminismo de segunda vaga, uma vez que era ativista negra norte-americana que abordou temas tão importantes como o combate à história da escravatura e do colonialismo, lutando contra os sistemas de opressão. Uma das suas obras feministas antirracistas mais conhecidas é a “Ain’t I a Woman”, onde fala sobre o feminismo negro, a luta das mulheres negras e da sua história constante de violência. Estas mulheres eram duplamente vítimas, por um lado, sofriam de misoginia por parte do homem branco europeu, mas também pelo homem negro, já que se tratava de uma sociedade machista e patriarcal, e por outro lado, eram oprimidas por essa mesma sociedade colonial branca (não apenas pelos homens, mas também pelas mulheres brancas, burguesas de classe média/alta). Dizendo-nos a ativista que: “Quando se fala de gentes negras, o sexismo opõe-se ao reconhecimento dos interesses das mulheres negras; quando se fala de mulheres, o racismo opõe-se ao reconhecimento dos interesses das mulheres negras. Quando se fala de gentes negras, a atenção tende a recair nos homens negros; quando se fala de mulheres, a atenção tende a recair nas mulheres brancas”.
Apesar de bell hooks ter sido uma mulher norte-americana que influenciou bastante o pensamento feminista dos anos 70 ainda hoje se mantém muito atual, indo para além das fronteiras do seu país. Fazendo-nos as suas obras pensar no caso português e de como continuamos a ter um discurso colonizador, de romantização daquilo que foi o colonialismo português na época, sendo que a teoria e testemunhos da autora não são muito diferentes daqueles que são os testemunhos de quem sofreu na pele o orgulho aliado à violência dos tão aclamados ‘descobrimentos’.
O facto de nos referirmos nos dias de hoje, seja nos media ou na educação escolar, a esta época como a altura dos ‘descobrimentos’, prova que o 25 de abril não cumpriu os três D’s que pretendia – Democratizar, Desenvolver e Descolonizar – uma vez que o último ficou por se realizar. A descolonização não aconteceu a partir do momento em que se continua a glorificar a invasão de terras que já existiam e que não eram nossas, ou quando nos fazem acreditar nos currículos escolares que na Guerra Colonial ‘nós’ (homem branco europeu) éramos as vítimas que apenas defendiam os territórios que tinham ‘descoberto’ e os ‘outros’ os inimigos, enquanto que na realidade eram apenas gente que se queria libertar das amarras do colonialismo, do peso da escravatura, ver-se livres da opressão e do opressor. Enquanto não existir uma descolonização dos currículos o terceiro D que abril nos prometeu não irá acontecer, porque não vale só abandonar os territórios quando durante séculos de tortura se vai destruindo uma cultura, as suas pessoas, gerando consequências visíveis até hoje. Já nos dizia José Mário Branco: “descoloniza, filho, descoloniza”.
Referir também o facto de que foram as mulheres quem mais sofreu com o período colonial, a Guerra Colonial e no pós-colonialismo, visto que foram aquelas que viram não só as suas terras a serem invadidas pelo homem branco, mas também os seus corpos a serem colonizados e usados como armas de guerra, como se deixassem de ser gente e uma conquista se tornassem. Tanto o racismo como a hipersexualização no Portugal pós-colonial contra estas mulheres são deste passado.
Por isso mesmo é que falar de bell hooks e do seu legado nos dias de hoje é falar-se de todas estas questões, de como também a nós nos cabe refletir sobre delas, e de como temos ainda tanto que aprender com aquilo que ela nos tinha para dizer. Este é um legado de força, de luta, onde o saber dialogar era a sua maior arma, de modo que consigamos construir com ele novas formas de reivindicação, de olhar para o passado e sobre este construir um futuro mais igual, mais humano, mais feminista, mais interseccional e revolucionário.
Beatriz Realinho, de 21 anos, natural da Guarda. Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa. Está no mestrado em Estudo sobre as Mulheres: As Mulheres na Sociedade e na Cultura, na mesma instituição.
Faz parte de diversos movimentos e coletivos sociais, ambientais, LGBTQIAP+ e Feministas, sendo coautora do podcast “2 Feministas 1 Patriarcado”.