Auto-estrada XV

XV

Naquele mês de Agosto na reunião familiar do clã Terra, foi feito um balanço relativo ao acontecimento da auto-estrada. Tinha sido um desastre. Todos concordaram, abanando suas cabeças, mas ninguém ficou muito emocionado com o caso, nem havia possibilidades de ficarem melindrados secretamente. O dinheiro da indemnização fugira-lhes das mãos como grãos de areia. O sacrossanto dinheiro que provém de um rolo de papel higiénico verde que rola por inércia, e não tem nenhum lastro na espécie imensa que moureja na chamada economia real. Positiva tinha sido a aparição de Tiago com Solange, ele vestido de fato e gravata, ela com um elegante vestido azul com calças de balão. Um pouco depois foi confrontado com a necessidade de trocar o fato pelo macacão. 

 

Um pequeno grupo subiu a colina: Tiago e o seu pai, o seu irmão e a prima, os primos novos e dois cães rafeiros que Solange levava pela trela, arfando de língua protuberante. Coroando o grupo que subia a colina, um halo azul era pontilhado por alguns corvos que esvoaçavam e grasnavam. O grupo preparava-se para mourejar. A ideia tinha partido do velho de Tiago. Substituir as telhas de 1927 e o colmo por chapas de flandres. Para melhor proteger os vinte metros quadrados do palheiro. Era um pequeno exercício de idolatria patrimonial da parte do pai de Tiago. – Só faltava substituir a folha-de-flandres da porta de entrada por ouropel, construir um altar com velhas caixas de madeira pintadas de talha dourada e colocar no ápice um santinho. 

No topo do telhado, retirada a velha telha, fica o colmo à vista, fibras vegetais de feno, o grupo moureja com grande palavreado e alguma grita, com interjeições para ter cuidado e não se desequilibrar. Era interessante ver aquele rancho de gente retornando ao palheiro do sonho impossível e quixotesco e dar-lhe um restauro. Uma narrativa tinha desaparecido, mas tinha de ser substituída por outra. Não havia mais milho, ou cereais, nem velhotes que pagassem uma renda em géneros, somente um espaço vazio com memórias arquivadas em cada pedra de xisto como se fossem periféricos de informática. Em vez de produzir, o palheiro era uma nova história para o futuro, um novo moinho de vento. O pai de Tiago tinha encetado aquele simpósio de restauradores; queria fechar as pálpebras como se olhasse uma luz aurífica. Fechar as falhas financeiras e remediar as ideias com uma nova situação errática sob o olhar atento de Saturno. Era o ciclo errático da vida no Douro, por mais auto-estradas salvíficas. Como Íxion, este rancho de gente ficou amarrado de braços e pernas a uma roda cercada de serpentes e que gira sem jamais parar.

Mas a prédica do pai de Tiago não termina com a instalação dos zincos no telhado, do alto daquela torre, vislumbra sob um castanheiro um decrépito tractor vermelho, envolto em folhas secas, tufos de ervas rastejantes, comido pela ferrugem, de borrachas flácidas e ratadas pelo tempo. As crianças brincavam na máquina agrícola enquanto eles ralavam no restauro do telhado, com as folhas de zinco, os pregos e os martelos. As crianças utilizando o tractor para simular uma corrida de automóveis; mexiam o volante, pressionavam o acelerador, embraiagem, os travões e todas as manivelas possíveis, e faziam acelerações imaginárias.

 

Uma nova prédica.

Desculpem o meu reparo, mas ali aquela sucata, aquele tractor não pode ficar debaixo da árvore.

– E o que queres fazer com ele!? Responde Tiago

– Guardá-lo no interior do palheiro!

– Aquela sucata? Interroga

– Não é uma sucata, é uma antiguidade. Responde piurso.

– Há quanto tempo está ali? Vai para vinte anos, acho eu.

– Sim, vinte anos, mais coisa menos coisa, foi-me oferecido pelo meu pai, que o comprou para a lavoura em 1950, mas a vida mudou e deixámos de cultivar. Expõe detalhadamente o seu plano depois de uma longa peroração.

Os dois dialogam, rabiscam ideias, em busca de uma solução para retirar 1500 quilos de metal não funcional e obsoleto debaixo do castanheiro entregue aos elementos, para o abrigo do palheiro, até serem interrompidos pelo tio de Tiago, que se ofereceu para buscar uma retroescavadora do seu trabalho. Para Tiago era uma ideia para deitar ao lixo, aquilo era ferro-velho e pronto. Havia sempre uma nova ideia, para renovar o ciclo repetitivo, porém as receitas extravagantes do pai de Tiago, que apareciam sempre que lhe apetecia virar o bico ao prego, dentro de um pensamento conservador; ele queria a indemnização da auto-estrada e tinha ao mesmo tempo pena por ver aquele património ser demolido. Na vida não raras vezes, nem todos os interesses resultam bem e o conflito entranha-se na natureza humana. O palheiro era uma antiguidade, um dinossauro histórico, uma esperança e o objecto de algum descontentamento. 

Solange adorou a ideia, sentia a sua criatividade a borbulhar e já se imaginava de trincha na mão e tintas desmaiadas numa tina em busca de nova narrativa para aquela sucata abandonada, enquanto era o circo infanto-juvenil de duas crianças reinventando o mundo em acelerações que nunca mais acabavam. Excepto este agradável pensamento que mais tarde partilha com Tiago, gostaria de ser ter escapulido dali, como quem mete uma mudança a fundo no automóvel e ultrapassa um veículo de longo curso. 

O relógio avança para a hora do almoço; depois de passarem todos de mão em mão as folhas-de-flandres, salvando o palheiro dos elementos e da ausência das artes da lavoura, depois de se contorcerem no que podia ser o último gesto colectivo daquela família, descem a colina em amena cavaqueira, menos Tiago, sisudo, de pensamentos mudos, rememorando os acontecimentos daquele Verão, afligindo-lhe a presença da auto-estrada, ali ao lado, e eles ali sem poder fazer nada, espectadores observando a grande peça do desenvolvimento. 

Estava fresco na sua memória o cheiro do alcatrão dessa manhã da auto-estrada em construção, como um grande veludo de negro, simétrico, pontilhado por traços finos de branco. Quem sabe o que é o cheiro do alcatrão? Um grande dragão negro de minerais de derivados de petróleo, florestas com milhões de anos, comprimidas por inexoráveis forças tectónicas, agora espalhadas com a espátula do progresso por montanhas libertadas do seu isolamento – dizem.

 

Parte XV do Conto Auto-estrada. Ver mais aqui

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Paulo Seara (1981) natural de Vila Real. Licenciado em Animação e Produção Artística pelo Instituto Politécnico de Bragança em 2005. Escreve poesia desde 1999, tendo colaborado esporadicamente em várias publicações em papel ou online. Colaborando com o blogue Pomar de Letras no qual publicou poesias, contos, textos soltos e traduções, e Inefável – Revista em Rede de Poesia. Vive em Edimburgo, na Escócia, desde 2014. Em 2007 foi co-autor do livro Crónicas do Demencial, o Porquê do Síndrome Nilhoo, editado pela Corpos Editora. Publicou a colectânea de poemas Livro Daninho (Edições Bicho de Sete Cabeças, 2016), e Take Away (Edicões Bicho de Sete Cabeças, 2017), ambos os livros estão disponíveis para download gratuito em smashwords.com. Para além de poeta Paulo Seara é artista visual desde 2005, tendo realizado mais de uma dezena de exposições. Os conteúdos de artes e letras produzidos por Paulo Seara podem ser observados em: https://www.facebook.com/prseara/ .

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