Auto-estrada VI

VI

Quando o palheiro ficou sobre a ameaça de expropriação, segundo informações da agente imobiliária, a minha mãe há muito se tinha decidido em livrar de alguns tarecos, para investir na construção de um jardim japonês. Foi num dia de Outono do ano passado, quando observava uns velhotes às voltas e arquivoltas com alguns alqueires de milho, que secavam na eira do palheiro por simpatia. O rodo espalha, para a direita, para esquerda, e avança o grão no granito. Um som doentio e seco saía da madeira enquanto roçava na pedra. O milho ondulava, ao sabor daqueles gestos repetidos desgraçadamente como uma roda. 

 

– Óptimo, meus caros, passem bem, não há necessidade de fazer nenhum contracto, este assunto não é com a imobiliária, alguém vos contactará em breve da concessionária da construção para realizar a expropriação.

– Quem lhe deu o palpite? Como sabe que a auto-estrada vai passar por cima deste palheiro? Indaguei.

Está afixado no edital na junta de freguesia todo o plano de execução. Tudo muito preciso. Disse com clareza. – Claro que temos os nossos informadores, somos colaboradores da empreitada.

De imediato a esperança ao virar da esquina, para o meu pai equivaleu a sentir o cheiro do dinheiro, durante a reparação do telhado, no meio daquele arriscado equilibrismo, fazia contas à vida. Dividido entre dois mundos. Operário e camponês. Observava agora uma parcela dos seus problemas metidos num saco e atirados ao rio. Ala que se faz tarde, e perguntou com afã.

Quanto podemos fazer?

A rapariga estuga o passo e reflecte. 

Cerca de 7500 a 10000 euros, Senhor Tiago Álvares . Tenho uma noção de que anda por esses valores, quando comparado com outros imóveis. Sabe, é um espaço interessante. Uma pessoa demora aqui o olhar. Tem patine… quero dizer, antiguidade. 

– Ora antiguidade, é quase um museu. Atalhei.

– Meus senhores, vou partir. É tempo de picar o ponto. 

Entretanto o progenitor estava de atalaia, sorria para a varanda onde estava a senhora minha mãe, que lhe retribuía o favor. 

O automóvel arranca, vai com o vento, desce o vale, a poeira do fim do dia revela insectos em contra-luz. Não voltou mais. Julguei por algum tempo, que a inexistência de nenhuma mensagem era um sinal benigno. 

 

Passaram-se semanas. 

Tiago seguiu a sua vida, sob o céu baixo e profundo, rodeado por renques de pinhos jovens, que brotavam da paisagem mutilada pelos incêndios. Respirava como um cavalo, transpirava como um cavalo. As rodas tensas da bicicleta de montanha subiam a paisagem, caminho acima, serpenteava a bel-prazer da erosão, algo hesitante no caminho de terra. As pedras pulavam à medida que a bicicleta prosseguia. Distinguia, a poucos quilómetros de distância, uma veia que prosseguia no cenário como uma enorme minhoca, com um séquito de máquinas amarelas.

A auto-estrada, a auto-estrada (ecoava no cérebro como um zumbido).

Ajeitando a lente dos seus binóculos, observou a actividade que formigava na paisagem. Uma profecia que se cumpria diante dos olhos. Aberta com máquinas de rastro e explosivos. O grande acontecimento do século. Antes eram necessárias horas num automóvel para chegar à cidade do lado sul do rio. No futuro mais próximo, com as distâncias encurtadas, mais preparados para os desafios do futuro. Ajeitando o olhar, passa revista às vinhas, olivais, armazéns, lugares. A paisagem é esventrada, a vida é tudo menos cinzenta e parada por aqui, por cada pazada de pedras e terra nascia a esperança, por cada vela de dinamite um sorriso numa criança fixada no interior. Os olivais e as vinhas sacrificadas, ouviu dizer, não pagam mal por essas propriedades. Aquele armazém, aquele depósito, aquela oficina, derrubados. Os desejos do Homem, reconheceu, são substituídos por novos desejos. Desenterrava-se ali a verdade, que os binóculos observavam, os camiões de terra e pedras respondiam aos desígnios da região, tinham dito. O mote juventude com história matizava-se naquela maquinaria infernal que comia a paisagem. Tiago reflecte, sonha com os juros que podem aparecer inexoravelmente com a indemnização. Sabia de antemão que os 10000 mil euros eram bom dinheiro. Uma felicidade espraiava-se no rosto, o dinheiro, a liberdade do dinheiro para decorar o endurecimento da vida; o seu estado de espírito não era reprodutível, era a sua verdade psicótica. Também ouviu dizer que não pagam assim muito aos proprietários onde passa a estrada. Ponderou. Pensou. Teve uma amálgama de pensamentos, talvez viajar, o jardim japonês da mãe, maior qualidade de vida para o pai.  – Isto não pode ser mau, não pode!

Ajoelhou o pensamento naquela visão. Estava crente.

Sem algo melhor para fazer, e sem a mínima vontade de ir para casa, Tiago resolveu visitar, numa aldeia, um amigo. Tinha necessidade de ir confirmar, para se satisfazer com a visão redentora. O milagre. A bicicleta desce muda pelo pinhal, oscilando nos altos e baixos, os estridentes rangidos dos travões importunam dois corvos que terminam abruptamente com os restos uma lebre morta.

A auto-estrada, a auto-estrada (ecoava no cérebro como um enxame de abelhas).

 

Parte VI do Conto Auto-estrada. Ver mais aqui

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Paulo Seara (1981) natural de Vila Real. Licenciado em Animação e Produção Artística pelo Instituto Politécnico de Bragança em 2005. Escreve poesia desde 1999, tendo colaborado esporadicamente em várias publicações em papel ou online. Colaborando com o blogue Pomar de Letras no qual publicou poesias, contos, textos soltos e traduções, e Inefável – Revista em Rede de Poesia. Vive em Edimburgo, na Escócia, desde 2014. Em 2007 foi co-autor do livro Crónicas do Demencial, o Porquê do Síndrome Nilhoo, editado pela Corpos Editora. Publicou a colectânea de poemas Livro Daninho (Edições Bicho de Sete Cabeças, 2016), e Take Away (Edicões Bicho de Sete Cabeças, 2017), ambos os livros estão disponíveis para download gratuito em smashwords.com. Para além de poeta Paulo Seara é artista visual desde 2005, tendo realizado mais de uma dezena de exposições. Os conteúdos de artes e letras produzidos por Paulo Seara podem ser observados em: https://www.facebook.com/prseara/ .

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O renascer da arte a brotar do Interior e a florescer sem limites ou fronteiras. Contos, histórias, narrativa e muita poesia.

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