Um coxo, um estranho e um agricultor

Hoje um agricultor contou-me uma história, que jurou ser verídica – portanto juro por ele também – sobre os seus onze patos. Jorge Bucay iria adorar.

Como já era hábito, o homem comprava patos de forma sazonal, alimentava-os, deixava-os viver com espaço e alguma dignidade até estarem com o tamanho suficiente para serem mortos e transformados em alimento. Os patos passam a vida sem saber que na verdade são alimentos. Mas o agricultor afirma convicto de que tem sempre muita afeição por eles, mas nunca pena na hora da morte – dizem que o animal custa mais a ser morto se tivermos pena deles.

Nesta ninhada aconteceu-lhe algo normal, porém que a ele nunca acontecera. Um dos patos adoecera, não sabia o que tinha mas tornou-se coxo. E com esforço andava atrás dos irmãos como os patos andam – porque os patos são animais muito sociais. Os irmãos corriam, ele tentava correr atrás deles, agia como um pato normal, mas sempre atrasado, mais magro, mais cansado pelo esforço que tinha. Os irmãos, sempre que um deles estava em apuros, corriam a ir ter com esse gritando, ainda que com muito medo. Isto não só com o pato coxo, era com todos sem distinção. 

Certa vez, o agricultor resolveu intrometer-se na natureza e muito penou atrás deles para apanhar aquele pato e tentar ajudá-lo. Todos corriam em alvoroço, assustados, o pato que mancava tentava fazer o mesmo. “Doía vê-lo desesperado a correr sendo ele o meu alvo a apanhar, cheinho de medo, mas agora eu não podia simplesmente parar, e decidi apanhá-lo”, diz-me aquele homem a tentar esconder a emoção, com a voz embargada. Apanhou o pato, o coração dele parecia que ia saltar e berrava o mais forte que conseguia, se as asas escapavam da mão, ele abanava-as de forma quase epilética – a atitude costumeira daqueles animais no caminho para a faca que, habitualmente, os esperava. 

Com dificuldade agarrou o pato e tentou acalmá-lo, os restantes estavam perto a tentar ajudá-lo, mesmo que atemorizados. Quando considerou o pato calmo, ele corre desenfradamente para junto da sua fraternidade. Não serviu de nada a intervenção plena de boas intenções, mas ignorante.

A partir daquele momento passou a observá-los de longe, até onde eles permitiam. Quando todos tentavam voar, o coxo via-se atrapalhado, sempre mais atrás dos outros. Nos primeiros passos quase sem poder pôr aquele pé no chão. No entanto, naquele momento voou e foi o primeiro a voar, ao não conseguir pousar a pata. Num instante ficou na dianteira daquele bando.

Quando chegou a hora da matança, foi decidido deixar dois patos. É ingrato ter de escolher! Não é impossível…

Por princípio todos iriam ser mortos, mas ele não era capaz. Contudo era também inquestionável que não poderia deixar todos vivos. Deixou os suficientes para que pudessem continuar a viver com naturalidade.

Um dos patos sobrevivo foi o coxo. Aquele que desde o ínicio encontrou um obstáculo que, aparentemente, lhe dificultaria a vida, foi o mais bem-aventurado e ainda hoje vive na sua normalidade, não em solidão, porque ficou aquele outro para conseguirem viver com alguma felicidade.

O outro pato que sobreviveu foi o que era mais estranho e diferente de todos, com uma mancha preta na cabeça. Era também o mais gordo e, por isso, o mais provável ser morto em primeiro, sucedeu que aquela estranheza e diferença salvou-o.

“No fim, não é que se safaram o coxo e o estranho!”, afirma-me ele admirado, mas com um ar de quem acaba de encontrar um grande conhecimento e sabedoria, que nunca pensou fazerem-lhe falta. Acontece que, agora que tinha adquirido alguma sabedoria que lhe satisfez o espiríto, percebeu que sempre tivera falta daquele momento, mas nunca o soube por não o conhecer.

Parece quase uma história forçada, mas eu vi, com os meus olhos, o coxo e o estranho. Pareciam bem e satisfeitos, ele fez questão de me mostrar.

Para além do que aquele relato me ensinou, compreendi que se podia aprender mais com um agriculltor do que com um intelectual que já lera todas as “enciclopédias” do mundo. 

É possivel aprender mais a observar patos do que a ler Sarte.

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Paulo Rodrigues, Santa Comba Dão, começou a escrever muito cedo.
Participou em várias coletâneas de poesia, prosa ou contos infantis organizadas por vária editoras como a "Orquídea Edições", "Lua de Marfim" e "Modocromia". Escreveu também por diversas vezes em edições "Sui Generis" e a prestigiada "Chiado Books".
Colaborou na organização da fanzine lançada em Santa Comba Dão, "Cabeça Falante", que inaugurou a editora recém-criada "Canhoto Esquerdino R", onde foi Assessor de Comunicação não remunerado.
É criador e administrador do blog "lagrimasdavida.blogspot.pt"

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