Quando a municipalização compromete a universalidade no acesso aos serviços públicos

Foi publicada a 16/08/2018 a Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais (Lei 50/2018) que tem como objetivo estabelecer “o quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, concretizando os princípios da subsidiariedade, da descentralização administrativa e da autonomia do poder local”.

 

O Grupo de Trabalho Autárquico do Bloco de Esquerda, a 18 de janeiro de 2019, já se tinha pronunciado sobre a transferência de competências de vários setores para a esfera autárquica. Esta lei não só obscura o processo de execução por parte das Assembleias Municipais, como viola o princípio da subsidiariedade que irá agravar as assimetrias regionais. Não esquecendo, claro, o facto de os municípios não deterem meios técnicos e recursos humanos especializados para o efeito, correndo o risco de estas competências serem concessionadas a privados ou empresas municipalizadas. 

 

Esta questão ganha dimensão quando olhamos para os concelhos de menor densidade, especialmente no interior. Quando os principais empregadores são as Câmaras Municipais, o Presidente da Câmara ganha um papel dominante no concelho. Assemelha-se a um pater familias1. Instalou-se uma oligarquia rural nos municípios menos povoados e toda a vida do município gira à volta de um trono ocupado pelo Presidente do Município.

É o Presidente do Município que deve servir o povo e não o inverso.

O Conselho de Prevenção da Corrupção revelou que 48% dos casos de corrupção estão relacionados com autarquias (câmaras municipais: 223, juntas de freguesia: 56 e empresas municipais: 9). Estes números só revelam práticas irregulares na gestão do dinheiro público. Há uma gestão, quase familiar, do orçamento do município que gira à volta do Presidente do Município. Esta prática dissimulada que tende a não deixar vestígios enraizou-se na cultura local. Em contrapartida, cria-se uma falsa ideia de que se trata de uma política apaixonada, e que tudo é feito em prol do Município, disputando a simpatia do povo.

A municipalização só trará um reforço a esta oligarquia.

A par da corrupção local, o endividamento municipal atingiu valores altíssimos. E isso reflete-se na redução do crescimento dos municípios, da diminuição do investimento público local e na deterioração das infraestruturas. Vejam-se os casos do interior Nordeste.

A corrupção reflete-se não apenas na descrença do sistema estatal, mas também tem incidência na educação, na cultura e na saúde. Este efeito nocivo tem maior incidência nas áreas mencionadas naquelas localidades onde a corrupção nos municípios é maior, pois vai refletir-se na falta de investimento em infraestruturas.

Os serviços públicos são o pilar da democracia. Temos de promover uma alternativa de um modelo de descentralização com base na autonomia dos serviços. Uma vez que a lógica do Governo é apenas diminuir as despesas da administração central, transferindo para os municípios verbas abaixo do necessário, serão adversas as consequências para os serviços nos concelhos. 

Uma vez que estas responsabilidades passam para a esfera municipal, só iremos reforçar o poder da oligarquia rural. Para além dos aspetos já mencionados, poderão ser aplicadas novas taxas sobre os munícipes, poderemos assistir a um aumento do endividamento das contas do município, assim como iremos assistir à concessão a privados das áreas da educação e saúde, como apontado já pelo Grupo de Trabalho Autárquico do Bloco de Esquerda. Na cultura, podemos incorrer o risco de não vermos salvaguardado do património classificado, através da fiscalização e licenciamento, que irá ficar sob a alçada da vontade do poder local. Ficam por assegurar, também, a transparência na contratação dos recursos humanos para estes equipamentos e os direitos consagrados na Constituição. Assiste-se, muitas vezes, à alienação do direito à greve, porque o “patrão” é o Presidente do Município e conhece a população.

1 A Lei das Doze Tábuas (Lex Duodecim Tabularum), uma antiga legislação que esteve na base do Direito Romano, definia que o pater familias tinha vitae necisque potestas (o poder da vida e da morte), ou seja, exercia poder sobre a mulher, os filhos e os escravos (Westbrook, Raymond (1999) Vitae Necisque Potestas. Historia: Zeitschrift für Alte Geschichte, 48(2): 203-223).

Outros artigos deste autor >

Linguista, investigador científico, feminista e ativista social.
Nascido em Lisboa, saiu da capital rumo a Terras de Trás-os-Montes e cedo reconheceu o papel que teria de assumir num interior profundamente desigual. É aí que luta ativamente contra as desigualdades sexuais, pelos direitos dos estudantes e dos bolseiros de investigação. Membro da Catarse - Movimento Social, movimento que luta contra qualquer atentado à liberdade/dignidade Humana. Defende a literacia social e política.
(O autor segue as normas ortográficas da Língua Portuguesa)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts

Incêndios na Austrália

Foto retirada do banco de imagens PxhereHá um debate a percorrer a Austrália sobre as causas do que…
Skip to content