Das pandemias do interior

Imagem de congerdesign por Pixabay
Não é a primeira vez que o distrito de Vila Real é atacado por uma pandemia. Aliás, foram várias, ao longo das últimas décadas. A pandemia da despovoação. A pandemia do encerramento dos serviços públicos. A pandemia das barragens. Entre tantas outras. Mas destas nunca ninguém quis falar. Até aparecer esta última pandemia. A pandemia que nos atacou a todos e a todas de forma igual, dizem. Nada mais errado. O interior foi o mais atingido. Não em número de infeções, mas em número de mortes.

Este é um vírus que ataca os mais vulneráveis. Ataca aqueles que mais precisam de um Estado forte que apoie, incondicionalmente, todas estas pessoas. Todas e todos nós conhecemos a realidade do interior. Despovoado. Isolado. Com uma população envelhecida e fragilizada do ponto de vista social. Não por acaso, comemorou-se, na passada quinta-feira, dia 1 de outubro, o dia internacional da pessoa idosa. Um dia que nos deve servir para refletir a importância daqueles que já trabalharam e tanto lutaram pelos seus direitos. É a eles que devemos quem somos.  

É necessário alertar para as fragilidades com que se defrontam muitas e muitos residentes (em termos habitacionais, financeiros e sociais) e isso tornou-se mais claro aquando do confinamento. Os efeitos da pandemia não foram iguais para todas e para todos e esse é o maior dos desafios: apoiar aqueles e aquelas que mais dificuldades enfrentam num distrito que vive de pequenas unidades de transformação de produtos alimentares e de alguma expressão de indústria de extração de granito. 

A indústria transformadora foi-se extinguindo e passámos a viver de uma fonte abstrata: o turismo.  O turismo parecia ter-se tornado na pedra filosofal do interior. Nada mais errado. Começámos a investir tudo neste setor, deixando para trás a necessidade de uma revolução industrial que permita a autossuficiência. 

Portugal esqueceu-se do interior. Deixámos que tornassem o interior numa espécie de local bucólico, onde as pessoas só vivem do campo, onde habitam casas frias, onde se morre de frio, onde a rede de telemóvel ainda não chega. E essa imagem não está nos panfletos do turismo vendidos no Porto ou em Lisboa. Porquê? Por vergonha, está claro. Vergonha por saberem que no século XXI essa ainda é a imagem de um interior esquecido por tantos.

Vivemos num distrito onde a taxa de analfabetismo é das mais altas do país: 15% da população de Boticas e Ribeira de Pena não sabe ler ou escrever, 14% em Montalegre, 12% em Valpaços e Santa Marta de Penaguião, 10% em Alijó, Sabrosa, Mondim de Basto e Murça. Estes valores devem envergonhar-nos. A todas e a todos. 46 anos depois do 25 de abril, em média, 10% da população residente do distrito de Vila Real é analfabeta.

Este é um paradigma que deve ser alterado com medidas concretas, porque, como diz o sábio povo, de boas intenções está o inferno cheio.

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Linguista, investigador científico, feminista e ativista social.
Nascido em Lisboa, saiu da capital rumo a Terras de Trás-os-Montes e cedo reconheceu o papel que teria de assumir num interior profundamente desigual. É aí que luta ativamente contra as desigualdades sexuais, pelos direitos dos estudantes e dos bolseiros de investigação. Membro da Catarse - Movimento Social, movimento que luta contra qualquer atentado à liberdade/dignidade Humana. Defende a literacia social e política.
(O autor segue as normas ortográficas da Língua Portuguesa)

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