Habituámo-nos a pensar as grandes transformações que derivam das lutas sociais como processos intrinsecamente dependentes dos aparelhos do estado, desde os partidos aos sindicatos. Mais ainda, como conflitos e processos que dependem destes aparelhos do estado e o disputam. A esquerda como instituição e ideologia, como aparelho do estado, assume-se como o veículo de toda a possibilidade emancipatória da sociedade, ou, melhor, de uma parte dela. E, talvez por isso, não nos seja fácil vislumbrar uma solução para essa imensa crise no mercado laboral que tem atravessado os continentes das sociedades liberais no pós-pandemia sem assumirmos que tudo passa por uma questão de reivindicar melhores e melhores condições de trabalho até ao ponto em que finalmente os trabalhadores aceitem voltar à economia dos capitalistas. Tratar-se-ia mais, portanto, de reequilibrar as relações laborais e de mitigar as desigualdades sociais do que propriamente de romper com a economia, isto é, com a economia na sua construção liberal, a economia dos patrões e das chefias e dos trabalhadores e dos subordinados. A ideia subjacente a esta forma de compreender a dinâmica social é a de que não há progresso nem forma de combate social que não passe pelo enquadramento institucional das lutas e pela convergência das partes antagónicas a um conjunto de acordos (tácitos ou não) que possam segurar mais um pouco a economia tal como ela é.
E o papel da esquerda, tal como a defini aqui, é justamente a de garantir que os processos sociais que derivam do conflito e do antagonismo estejam devidamente enquadrados pelos aparelhos do estado. À luz deste entendimento da esquerda em relação ao devir social é inadmissível que a transformação possa ser o resultado de um processo coletivo de destituição, de uma recusa massiva em relação ao estado de coisas vigente, mas tenha de necessariamente passar por uma construção mediada pelo estado e seus recursos institucionais. É óbvio que o desvinculamento radical e massivo em relação à economia não significa o fim das necessidades económicas. O âmago da questão está antes na negação – pela mesma esquerda que se assume como a vanguarda do proletariado – da autonomia do sujeito proletário como potência constituinte, como força criadora por natureza.
Ao analisarmos fenómenos do mundo pós-pandemia como a já designada “grande demissão” estadunidense, ou a transversalidade da crise no mercado laboral na economia ocidental (pelo menos!), deparamos com a mesma bifurcação no caminho definido para os trabalhadores pobres e precários. A sua recusa em regressarem aos seus antigos postos de trabalho tem como resposta – da direita à esquerda – a negociação pela melhoria das suas condições laborais e não a implosão do edifício económico capitalista. Afinal, olhando para o caso português em específico, qual o preço para os trabalhadores portugueses voltarem à economia tal qual a conhecemos, 800 euros, 1000 euros, 2000 euros, 1 milhão de euros? Será possível sequer mensurar um preço que definiria uma “boa forma de exploração”?
Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.