A decisão do Ministério Público (MP), relativamente ao projecto do parque eólico na
Serra de Passos, no concelho de Mirandela, foi divulgada na semana passada,
discretamente, como se tratando duma irónica alegoria minorando o impacto real daquilo
que deveria estar em discussão: A destruição duma herança cultural única e
enriquecedora, por puro capricho, especulação e capitalismo. A empresa operadora, a P4,
nas palavras de Vieira de Castro, avançou com a chantagem mesquinha da ameaça de
indemnização. Alterar a localização do parque eólico para uma serra contígua em que
este não afecte património da humanidade não é sequer cogitado, a birra de interesses é
mais importante e ao veto do MP, responde-se com chantagem, ameaças e ironias de
mau grado e má-fé. “Amanhã, aparece uma minhoca qualquer e vai ser do paleolítico”,
não é nem ironia, nem declaração de frustração, Vieira de Castro sabe, perfeitamente,
que o que está em causa, é uma localização ímpar recheada com sete mil anos da
história da humanidade, a tentativa de manipular e menosprezar tanto o sítio
arqueológico, como a riqueza do património em si, assemelhando-os à “vulgaridade”
duma minhoca, não é inocente, nem casual. É natural, perante a ameaça de vinte milhões
de euros de indemnização “por umas minhocas”, para que lado penderá a opinião pública;
não é à toa que a empresa evita falar no património arqueológico e antropológico do sítio,
ironizando com “as minhocas paleolíticas”.
Após o incêndio que quase destruiu o monumento, em 2019, quase mil milhões de
euros foram angariados para as obras de restauro da catedral da Nossa Senhora de Paris
(Notre-Dame), salvando-se o desafortunado monumento e a sua História. A força de
vontade e o interesse em não deixar perder-se na memória um marco histórico construido
entre 1163-1345 é louvável, devemos preservar a História e os seus marcos, aprender
nela e com ela.
Quando, em Março de 2001, o fundamentalismo religioso deitou por terra duas
milenares estátuas budistas no Afeganistão (construídas entre os séculos IV e V, ainda
nem o Condado Portucalense fora formado), quem não se indignou? Mesmo quem não
reverencia aquela filosofia religiosa, compreenderá que se deveria saber respeitar a
História dos outros e, principalmente, da humanidade; porque na verdade estes
monumentos adquirem um valor extrínseco ao seu património local e/ou religioso, mais do
que ícones, são glifos das suas sociedades, contam as suas histórias, grafados a História.
São uma das narrativas da sua herança cultural e se, por um acaso da evolução, calhe
perder-se registo das suas memórias, estes (entre outros) serão os últimos marcos
deixados para que no futuro outros os relembrem e mantenham vivos – numa memória
romantizada, porém persistente. Não haverá, neste ponto, leitor que discorde de mim,
acredito, é evidente o valor do património e da memória e a ninguém passará pela
cabeça, de bom grado e consciência, destruir e privar-nos do legado cultural da
humanidade.
É claro que não podemos conservar todos os registos materiais do passado
intactos, nem tudo tem o mesmo, ou sequer, peso a nível histórico, além da dispendiosa
manutenção. Por vezes, algumas obras icónicas precisam de dar lugar a outras obras,
também em si icónicas, em nome do progresso. Não se pode parar o progresso! Contudo,
se progredirmos sempre a eito, sem vermos onde pomos os pés, corremos o risco de
“estar à beira do abismo e dar um passo em frente”. Temo-lo feito com o clima, por
exemplo; apesar de todos os avisos nos últimos quarenta anos; os acordos de fantochada
e o facilitismo aceleram-nos contra uma parede maciça de autodestruição e poucos
parecem querer carregar no travão, ainda que todos o saibam identificar. Em nome do
progresso, a Barragem de Foz Tua submergiu a linha férrea isolando, ainda mais, as
populações, a troco de promessas, que nunca foram cumpridas, e tachos, dos quais
alguns nem chegaram ao enxoval. Arriscou-se (arrisca-se, ainda!) a classificação
UNESCO do Douro, em nome do progresso, mas só algumas contas bancárias
progrediram, na verdade; as populações ficaram com as promessas, as terras e os bolsos
vazios.
Agora, em nome do progresso, é imperioso erigir na Serra de Passos meia dúzia
de aerogeradores, é energia verde!, o que pode haver de errado com o progresso? A
própria Serra de Passos. A localização é, precisamente, o que há de errado, o valor e
significado do património cultural da humanidade alojados naquele lugar e a propensão
para a sua destruição – caso se prossiga com este ataque – são o que há de errado com
este processo. Porque isto é, na verdade, um retrocesso extraordinário, em prol de
promessas, terras e bolsos vazios. O valor antropológico e cultural deste local, com mais
de sete mil anos (setecentos séculos de História da humanidade aqui, em nossa casa!),
as respostas que nos pode dar sobre o nosso passado (e as questões que pode até
levantar), não podem ser menosprezados. Um marco destes não pode ser destruído por
causa de interesses privados e valores de rendas. A localização do parque eólico na
Serra de Passos não é imperativa, os seus ventos não são miraculosos, não irão criar
uma fonte inenarrável de energia; existem outros sítios onde os aerogeradores, podem
ser montados, produzindo energia, sem com isso arrasar milénios da História colectiva da
humanidade.
Esperar-se-ia, ‘tratando-se de um investimento de vasto interesse público’, que o
assunto fora tratado com toda a transparência, os órgãos e dirigentes municipais
estivessem a par do processo, a Declaração de Impacte Ambiental fosse legítima e sem
incongruências (como basear-se em estudos ultrapassados há anos), terem-se
consultado as equipas de arqueólogos responsáveis pelos trabalhos de exploração da
área e a população ser devida e, prontamente, informada das intenções e consequências
do investimento; Esperar-se-ia que todo o processo fora correcto e transparente, que as
populações de Trás-os-Montes não estejam a ser, outra vez, lesadas pela calada, através
de um processo dúbio, certo? Alguém ficará surpreendido com a resposta? O município,
cobardemente, escuda-se na honra de compromissos anteriores; a empresa defende-se
com a “energia verde”, como se tal alegação desculpabiliza-se o atentado patrimonial e
intenção da proposta; outros autarcas, nem sei se por manha se mesmo crendice,
argumentam com as vantagens económicas e a criação de empregos.
Uma rápida desconstrução:
Ao executivo compete zelar pelos interesses do município, se havia um mau acordo,
dever-se-iam usar os meios legítimos para o revogar e zelar pelos interesses da
população; À empresa, com a ladainha da energia verde, não interessa o ambiente, o
único interesse é privar a população da sua riqueza sócio-cultural e ambiental (não falei
sequer sobre a unicidade biológica do local), amealhando para os seus próprios bolsos a
riqueza material; Aos outros autarcas peço que me demonstrem onde, noutras
localidades, essas ditas vantagens beneficiaram as populações, que nos demonstrem que
empregos serão criados quando a mão-de-obra para a manutenção dos aerogeradores é
especializada e virá de empresas externas subcontratadas, que vantagens trará para o
turismo a destruição do património de valor turistíco? Aproveito para perguntar a
essoutras localidades, onde estão, nas suas terras, as vantagens e os lucros da
electricidade gerada e da linha submersa. Nos jogos de interesses dos bastidores vale
tudo, menos informar e defender os interesses do povo.
E neste jogo de vale-tudo, onde se vende a banha da cobra em nome do progresso
e da energia verde (porque o ambiente é importante quando dá lucro…), na hora da
verdade, quando se pergunta à população, iludida pelos suposto dinheiro que as
“ventoinhas” vão trazer», pelos «empregos que vão criar» e o progresso que vão trazer:
– «Porque é que acha que o parque era bom?»
– «É bom porque… “coise”…»
Pois, “coise”…, e enquanto uns “coise”, outros “coise”…
Nasceu em Macedo de Cavaleiros, Coração do Nordeste Transmontano, em 1983, onde orgulhosamente reside. Licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas, publicou poemas e artigos na extinta fanzine “NU” e em blogues, antes de editar em 2015 o livro-objecto “Poesia Com Pota”. Português de Mal e acérrimo defensor da regionalização foi deputado municipal entre 2009-2013.
Este autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.