Não vou andar com paninhos quentes, nem meias palavras. Portugal não é racista, mas há muitos portugueses que o são, e cada vez mais desavergonhadamente. Tenho feito questão, sem o ignorar, de nunca me aprofundar muito na minha opinião sobre racismo e as polémicas que se têm levantado, ultimamente, acerca deste assunto. Não por qualquer receio, mas porque, devido à sua sensibilidade, se torna difícil abordá-lo sem que haja virgens ofendidas que, perturbadas com a sensibilidade do tema, logo se exaltem e, infelizmente, manipulem a conversa com a sua própria vitimização, acabando, no fim, a exigir-se, ofensivamente, aos reais ofendidos que sejam estes a desculpar-se, por apontarem o pó. Mas os problemas não se resolvem varrendo-os para debaixo do tapete. O preconceito existe, magoa, e muito, quem se vê limitado e oprimido pelas suas maleitas.
Em entrevista ao jornal Público, António Costa, numa tirada, puramente, eleitoralista, optou por, não só, se afastar duma luta justa, necessária e fundamental, como, ainda pior, optou por dar a sua achega para minorar, diria mesmo até ridicularizar, essa luta, comparando a campanha de ódio de André Ventura, com a de denúncia de Mamadou Ba. Enganado pela máxima de “no meio estar a virtude” e confuso com a noção de extremismo, Costa misturou o apelo ao ódio e discriminação, com o apelo apaixonado e emocionado de quem, do lado odiado e discriminado, bate, firmemente, o punho cerrado na mesa, para exigir que não se aceite, nem perpetue o ódio, o preconceito e a discriminação. António Costa caiu na falácia da “moderação”, de não apoiar nem uns, nem outros, para se esquivar por entre os pingos de chuva e evitar molhar-se. É pena. Não sei se lhe agrada que o tratem por monhé, se acha que isso é normal; se achar que é normal, estamos então perante um primeiro-ministro que espelha o real problema que o Mamadou denuncia, a aceitação e cumplicidade. Se gosta… bom, isso é com Costa. Contudo, infelizmente, esquece que outros não gostam de ser insultados, que algumas pessoas trazem a ferida dos insultos, que ouvem desde criança, bem aberta e dolorosa no peito, por causa, precisamente, desta desculpabilização, desta normalização do ódio e da discriminação.
Quando uns, para demonstrar a dor da sua ferida, tocam numa outra ferida aberta e ignorada, que é a herança e os custos da expansão marítima, para os povos e culturas explorados, as virgens ofendidas, logo clamando aqui-d’el-rei, reclamam e barafustam para que não se mexa no passado glorioso de Portugal, ignorando que sem lembrar esse passado, não se pode mudar o presente e construir o futuro. Quando “os filhos” do preconceito colonialista lembram que não estamos perante uma negociação bilateral, que tenha beneficiado ambas as partes, e que, ainda hoje, as feridas do colonialismo doem aos que, mais fracos e impotentes, sentem na pele (nalguns casos literalmente) a ineficácia das medidas paliativas com que se quer calar essa vergonha, quando se fala destes problemas, não se trata de esfregar sal nas feridas, isso sim, de recordar e apontar a necessidade de se tratarem e sanarem essas mesmas feridas e as suas dores. O racismo, o preconceito, o ódio, não desaparecem por não se falar deles. Não! É necessário falar deles, expor o porquê de serem ainda um problema e do porquê de o serem ainda. Há excessos no politicamente correcto, é verdade, porém, não vale a pena tapar o sol com uma peneira e esperar que este se ponha, para reivindicar resultados. Os problemas existem e é necessário falar deles, enfrentá-los, para que se resolvam.
“Tão ladrão é o que rouba a horta, como o que fica à porta.” No silêncio, mesmo quando esse silêncio é falado em voz alta, há uma cumplicidade vil que, nas mentalidades fúteis e mesquinhas, alimenta as suas pretensões de odiar e julgar outrem apenas pela sua etnia. Quando se fala de racismo, xenofobia, ódio e discriminação, aqueles que não sentem as suas dores preferem que se cale a voz dos que sentem essa dor e dos que a denunciam, por isso se exaltam, quais virgens ofendidas; dizem que não são racistas, porque até têm amigos pretos, mas não querem os filhos a brincar com os labregos dos ciganos, nem comem nos chinos porque, desde que abriram o restaurante, começaram a desaparecer os cães e gatos vadios…
Quando era criança, a mãe duma amiga disse à minha, “Eu não sou racista, mas não deixava as minha filhas casar com um preto, porque eles cheiram mal. Mas com os seus filhos não me importava, os seus cheiram bem.” É nestes “não racismos, mas…” que se perpetuam as feridas que Mamadou Ba e outros denunciam, quando se fala no racismo sistémico. Ninguém acusa o estado português de criar leis discriminatórias, o que está em causa é a mentalidade que, por vezes inconsciente, mantém abertas as feridas do preconceito. “Portugal não é racista” clamam os maiores propagadores de ódio e discriminação racial. Pois não, Portugal não é racista, é um país, não tem personalidade nesse sentido, mas há portugueses que o são, e muito. Há atitudes que o são, mesmo que quem as tenha não o perceba. E essas atitudes, esses comportamentos, as piadas e boquinhas, que não afectam quem as diz porque não percebe, nem conhece a dor e as dificuldades das minorias, que por muito tempo ficaram caladas, essas tiradas doem nas feridas abertas que quem as sofre carrega no peito. Quando alguém é julgado, não pelo seu carácter e as suas acções, mas pela sua etnia; porque é preto, porque é cigano, porque é monhé; pela sua religião, porque não é católico e, consequentemente, o seu deus é um deus menor, como ele próprio, porque se fosse uma pessoa decente era católica; quando estes preconceitos são tidos como normalidade e se espalham, como se quem os ouve tivesse de comer e calar, porque além de inferior, está na terra dos “senhores da razão”. Enquanto isto não for compreendido e apercebido como errado, então, o problema estará longe de deixar de o ser e de ser resolvido.
É triste que Costa prefira entrar nesta paródia absurda de comparar o incomparável, metendo tudo no mesmo saco, sem a devida diferenciação, do que assumir a sua posição para estabelecer a diferença entre o ódio e o seu combate, ao invés de equipará-los como fez. Apelar ao ódio e apelar ao fim do ódio e as suas consequências, não são o mesmo. Não é o mesmo defender a ideologia e fazer a saudação Nazi, orgulhoso; publicar fotografias da refeição anterior a crimes de ódio racial, pelos quais se cumpriu pena; apelar à insurgência contra minorias, responsabilizando-as por problemas que nem remotamente lhes podem ser imputados; mesmo que as televisões tentem passar uma imagem de portugueses de bem destas alimárias. Nada disto é o mesmo que denunciar e combater o ódio. Por mais apaixonadas e emocionadas que sejam as palavras de quem se levanta contra o racismo, a xenofobia, o ódio, o preconceito e a opressão; por mais que possamos considerar que haja outras vias, outras formas de acabar com o racismo, a luta antirracista não é o mesmo que o racismo, não são duas faces da mesma moeda, nem dois discursos extremistas de ódio. Odiar o ódio, não é ódio em si, por vezes, os paradoxos, por mais que pareçam opor-se, na verdade, complementam-se. O Paradoxo da Intolerância de Karl Popper põe-nos, justamente, perante esta realidade. Tolerar o discurso de ódio, desculpando-o com a liberdade de expressão é ser cúmplice da escalada do ódio, não é ser apologista da liberdade. Se a liberdade de cada qual é limitada pela liberdade doutrem, o insulto preconceituoso e étnico-racial ultrapassa todas essas barreiras e, pior do que ofender, atenta contra a liberdade dos indivíduos.
Ao rejeitar esta oportunidade para se colocar do lado certo desta luta, António Costa – qual Henrique Raposo, um ignorante sedento de “likes”, que em mais uma crónica abjecta, tenta comparar a reivindicação da igualdade e dos direitos das minorias, com as “paródias carnavalescas” em filmes e pequenas rábulas humorísticas – vem dar alento a que essas gentes pequeninas e tacanhas, presas à sua acefalia preconceituosa, se achem no pleno direito de perpetuar e propagar a sua intolerância. Não, não podemos ser tolerantes com a intolerância. Não, não podemos querer tapar o sol com uma peneira e esperar pela calada da noite, para dizer que resulta. Quando compara a campanha de ódio de André Ventura, com a luta antirracista de Mamadou Ba, António Costa procura ter sol na eira e chuva no nabal, mas bem sabemos que não se podem ter ambos, simultaneamente. Talvez a mim custe mais do que a António Costa, quando lhe chamam monhé, e eu nem simpatizo com o homem, mas, ao contrário do primeiro-ministro, não confundo a propagação do ódio com o seu combate e, também ao seu contrário, estou pronto e orgulhoso para ter o meu nome do lado certo desta luta, não para procurar agradar a gregos e troianos, pensando nas eleições. Como me dizia o meu avô, “perfeito só deus, e nem ele agrada a todos.” A mim desagrada-me o racismo, pelo que, agradavelmente, o rejeito, assim como aos seus seguidores e propagadores. O meu ódio ao ódio não me faz odiar sem rancor, antes pelo contrário, faz-me procurar a união, a inclusão e a justiça.
Nasceu em Macedo de Cavaleiros, Coração do Nordeste Transmontano, em 1983, onde orgulhosamente reside. Licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas, publicou poemas e artigos na extinta fanzine “NU” e em blogues, antes de editar em 2015 o livro-objecto “Poesia Com Pota”. Português de Mal e acérrimo defensor da regionalização foi deputado municipal entre 2009-2013.
Este autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.