Ken Loach tinha dito que “Eu, Daniel Blake” (2016) seria o seu último filme, mas o cineasta britânico de 83 anos, assumidamente de esquerda, não se conforma com o caminho que a sociedade está a tomar e encontra sempre mais uma história para contar como forma de resistência. Esperemos que continue à procura destas histórias, de pessoas reais, do quotidiano de cidadãos comuns em situações difíceis.
“Passámos Por Cá”, estreado no Festival de Cannes 2019, é um drama que nos transporta para o habitual realismo social a que Loach nos habituou na sua obra, neste caso sobre o quotidiano de uma família da classe operária, após a crise financeira de 2008. Uma família de Newcastle, que perdeu a casa e tenta sair do círculo vicioso das dívidas. Abbie, a mãe (Debbie Honeywood) trabalha como cuidadora informal e Ricky, o pai (Kris Hitchen), compra uma carrinha nova para adquirir um franchise de entrega de encomendas por conta própria. Mas as condições são arriscadas, com horários rigorosos, longas horas de trabalho e severas penalidades contratuais.
Há vidas mesmo difíceis e Ken Loach tem-nos mostrado essas realidades ao longo da sua longa carreira. Este filme mostra as consequências diretas dos empregos precários nas famílias e acaba também por expor o estado do serviço nacional de saúde e dos direitos laborais. A classe média queixa-se, mas é a classe trabalhadora a que mais sofre com este sistema capitalista.
A vida desta família de classe baixa do Reino Unido é composta por dois adultos e dois jovens que tem dificuldades em pagar as suas contas. Os pais matam-se a trabalhar e em condições laborais arriscadas e abusivas, enquanto que os filhos vão também arranjando problemas em casa e na escola. Toda esta tensão entre o trabalho, as dificuldades financeiras e as suas relações familiares ameaçam o bem estar desta família, gerando discussões e discórdia. Esta família é como uma bomba relógio prestes a explodir. É esta a realidade que vivemos diariamente.
Tal como houve em “Eu, Daniel Blake” um “grito de guerra”, com a personagem de Daniel, também há aqui essa semelhança com Ricky e Abbie, sobretudo com a mãe que já esgotada e sem forças de continuar a ser escravizada e ver os seus a sofrerem tem um momento de revolta. Este sistema capitalista tritura-nos por dentro e nem damos conta, destruindo famílias e muitas vezes as próprias vidas. Estas personagens sobrevivem diariamente, estando subjugados a condições laborais bastante precárias e que em nada os protege. Nem lhes é dado tempo para protestar e reivindicar, pois se o fazem perdem o trabalho.
Tal como em “Eu, Daniel Blake”, este filme é mais um murro no estômago e que tal como o anterior é um filme emotivo e de luta que não muda o mundo, mas ajuda a compreendê-lo um pouco melhor.
De forma direta, sem qualquer manipulação, Loach mostra-nos a vida tal como ela é. É um filme político, contemporâneo e de resistência que denuncia as consequências diretas da exploração deste sistema. O Estado, imbuído pelo sistema neoliberal, asfixia as pessoas para satisfazer o capital financeiro, acelerando a qualquer custo e sacrifício a concentração da riqueza. Pois nós por cá continuamos a resistir, pois é uma necessidade, caso contrário morremos. É preciso resistir e Loach continua a fazê-lo da melhor maneira.
Realização: Ken Loach
Argumento: Paul Laverty
Elenco: Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Rhys Stone
Reino Unido/2019 – Drama
Sinopse: Ricky e a sua família lutam arduamente contra as dívidas desde o colapso financeiro de 2008. A certa altura, Ricky tem uma oportunidade de recuperar alguma independência com uma furgoneta novinha em folha e a possibilidade de ter o seu franchise como motorista de entregas por conta própria. É um trabalho duro, mas o emprego da mulher como cuidadora não é mais fácil. A família é forte, mas quando ambos são empurrados em sentidos diferentes, o ponto de rutura torna-se iminente.