Cinco anos depois o Cinema Ícaro continua sem voar

Cinco anos depois de um movimento de cidadãos ter criado a petição pública em Defesa pela Sala de Cinema Ícaro, o Ícaro continua sem voar…e sem cinema.
Cinema Ícaro
Cinema Ícaro, em Viseu

Fechada desde 2005, a sala de cinema, que se situa nas Galerias Ícaro, em Viseu, permanece encerrada, tendo apenas sido reaberta duas vezes: de 1 a 5 de maio de 2018, durante o Desobedoc; e outra de 27 a 29 de setembro de 2019, durante a Sementeira. Ambas as iniciativas culturais foram organizadas pelo Bloco de Esquerda Viseu. Desde então que a sala permaneceu de portas fechadas, até que em 2020 o Cinema Ícaro foi ocupado pela Igreja Batista Lagoinha Viseu. Ora, o que não faltam em Viseu são igrejas, assim como no resto do país. Já salas de cinema independentes contam-se pelos dedos de uma mão.

Cinco anos depois da primeira reabertura da sala enquanto espaço cultural e de ter sido criado um grupo de cidadãos e de cidadãs que se juntou em defesa pela reabertura da sala, a Câmara Municipal de Viseu (CMV) nada fez, nem quis saber. O Ícaro continuou esquecido pelo executivo camarário, sobretudo pela vereação da cultura, que na época era Jorge Sobrado e no presente Leonor Barata. Nenhum dos dois tem vontade política de transformar esta sala de cinema num polo de dinamização cultural para a região.

Uma Câmara Municipal que se gaba tanto de ser “a melhor cidade para viver” pode ignorar um espaço como este? Um auditório com capacidade para 172 lugares no centro da cidade, que permitiria servir a população com múltiplos eventos, tais como concertos, conversas, debates, tertúlias, congressos, entre outros, pode ser um não assunto? É um assunto (pertinente) e a posição política de o ignorar demonstra a falta de visão e estratégia no desenvolvimento da cultura regional. Haja vontade política e a sala seria adquirida e renovada pelo município, com programação autónoma das várias associações e agentes culturais da cidade. Um espaço livre para difusão e criação artística.

O Município de Viseu perdeu uma oportunidade em 2020, ano “do cinema e da fotografia”, promovido pela CMV com algumas iniciativas dedicadas à imagem fixa e em movimento. “Será que é este ano que a Câmara Municipal de Viseu vai realmente olhar para este espaço e pensar e definir que cultura quer para o público, para os agentes culturais, para a cidade? Que cinema promove este município? Que património quer este município preservar, valorizar, devolver aos viseenses?”, foram algumas das questões lançadas pelo movimento. “Um Ícaro fechado é um reflexo da visão estratégica cultural que este município promove: uma fachada pomposa mas em ruína por dentro.”. Nem uma palavra por parte da CMV.

Viseu é uma cidade com parcas infraestruturas culturais, contando apenas com o Teatro Viriato, o Teatro Mirita Casimiro, e um auditório do IPDJ (que apesar de ter sofrido obras recentes, perdeu lugares para o público), todos eles sob gestão pública. A cidade dispõe ainda, no campo da iniciativa privada, de dois multiplex, em dois centros comerciais, geridos pela NOS Audiovisuais, com 6 salas no Palácio do Gelo e outras 6 no Fórum Viseu, que, por sua vez, não oferecem uma programação independente e alternativa, capaz de reflectir o que é o panorama mundial da produção cinematográfica.

Cinco anos depois, não se soube seguir os bons exemplos, os casos de sucesso noutras cidades, como o Cinema Batalha no Porto (com gestão pública, da própria Câmara Municipal do Porto), ou o Cinema Ideal (em Lisboa), o Cinema Trindade (no Porto) ou a Casa do Cinema (Coimbra). Hoje, são salas de cinema de referência, com programação própria e reconhecida, que apostam na formação e fidelização de públicos diversos.

A luta pelo Cinema Ícaro só faz sentido em coletivo

A luta pelo Cinema Ícaro é anterior ao movimento de cidadãos e de cidadãs criado em 2018. Já o Cine Clube de Viseu tentou por diversas vezes reunir com o Município no sentido de ficarem com a sala para as suas sessões semanais. Sem qualquer sucesso, foi a luta do movimento popular em defesa da sala que foi possível trazer o assunto à praça pública, reunindo mais vozes locais e nacionais em sua defesa. Esta ação de cidadania deu visibilidade à sala que esteve muitos anos esquecida e foi graças à forte mobilização cidadã que conseguiu reunir uma petição com cerca de 1200 assinaturas.

A petição inclui assinaturas de artistas e agentes culturais locais como nacionais, ligadas ao cinema, como: os cineastas Pedro Costa, Miguel Gonçalves Mendes, Marta Mateus, Edgar Pêra e André Príncipe; os produtores Paulo Trancoso (Presidente da Academia Portuguesa de Cinema) e José Pedro Lopes; os professores e investigadores Carlos Melo Ferreira e Sérgio Dias Branco; os programadores de cinema Maria João Madeira, Joana Maria Ascensão , Miguel Ribeiro, Pedro Borges e Vitor Ribeiro; os críticos, Vasco Câmara, Ricardo Vieira Lisboa e Hugo Gomes; o fotógrafo André Cepeda; do Cineclube do Porto e Casa da Animação, Regina Machado; entre outros.

Contou também com o apoio dos comerciantes das Galerias Ícaro, que se juntaram à luta, pois também eles, tal como a cultura, foram prejudicados ao “sentiram o choque da centralização do comércio em grandes superfícies desligadas da rotina da cidade”. Assim, também os comerciantes das Galerias Ícaro e das redondezas apoiaram a reabertura desta sala, que ajudaria a fortalecer toda a zona comercial do centro. Os comerciantes das Galerias Ícaro, que resistem, abandonados, ao tempo das grandes superfícies comerciais, sabem que a sala de cinema pode ser um motor de dinamismo, de uma nova vida, para o pequeno centro comercial.

No entanto, lamentavelmente, a petição nunca contou com o apoio do Cine Clube de Viseu, que sempre preferiu manter-se distante do Movimento em Defesa pela Sala de Cinema Ícaro. Nunca entendi esta postura de desistência e de desinteresse pela causa por parte do Cine Clube de Viseu, que era um dos mais interessados em ver a sala ser devolvida à cidade e aos seus habitantes. A sua participação poderia ter sido fundamental para que a petição chegasse a mais pessoas, ao público cinéfilo que frequenta as suas sessões. Cinco anos depois o Cine Clube continua a realizar as suas sessões no auditório do IPDJ, que oferece más condições para o espectador.

O Ícaro deve ser devolvido aos viseenses e a todos os agentes culturais da cidade, de forma a dar-lhe uma vida como nunca teve e com uma programação cultural diversificada e dinâmica. A reivindicação do Ícaro foi uma ação de cidadania que deu visibilidade à sala de 2018 a 2020, tendo o movimento esmorecido nos últimos anos.

Não é com milagres da Igreja dos Lagoinhas que o Ícaro vai voltar a projetar cinema. Só em coletivo, com mobilização dos cidadãos e de cidadãs, agentes culturais locais e nacionais e forças políticas, a luta do Ícaro pode renascer e dar novas asas para voar.

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Se disséssemos que éramos um bando de miúdos, um tanto sonhadores, que queriam fundar um site para escrever sobre cinema e que, por algum desígnio divino, pudéssemos fazer da vida isto de escrever sobre a sétima arte, seria isso possível? A resposta é óbvia: dificilmente. Todavia Isso não impediu o bando de criá-lo em 2008, ano da fundação do Cinema Sétima Arte. O espírito do western tinha-se entranhado em nós…
“A atividade crítica tem três funções principais: informar, avaliar, promover”. É desta forma que pretendemos estimular o debate pelo cinema.
Acima de tudo, escreveremos sempre como cinéfilos, esses sonhadores enamorados da sétima arte.
www.cinema7arte.com

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Portuense mas reside em Viseu desde 2015 e é apaixonado por cinema e política. É administrador do site Cinema Sétima Arte, programador de cinema no espaço Carmo 81 e fez parte da equipa que reabriu o Cinema Ícaro, em Viseu, com o Desobedoc 2018. É ativista na Plataforma Já Marchavas, que organizou a 1.ª Marcha LGBTI+ de Viseu, em 2018.

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