Tem-nos chegado imagens de um suposto retorno à normalidade naquele foi o foco da pandemia, a cidade de Wuhan. Mas o que significa exatamente este “retorno à normalidade”? Mesmo descontando as distorções políticas do regime, as operações de “plástica” do regime comunista chinês, o que implica tal “retorno à normalidade”? Para além de toda a propaganda, de toda a geopolítica, de todo o conflito imperial, o que nos traz este novo presente, este novo real? Que “novas modalidades” o retorno traz consigo, o que será, o que já está a ser o “novo normal”?
Bem sei que as questões biopolíticas foram arredadas (descontando a polémica em torno dos artigos de Agamben), ou, pelo menos ofuscadas pelo imperativo coletivo de salvar vidas. Bem sei que vivemos tempos politicamente singulares em que a vontade coletiva, ou, poderíamos dizer, a “vontade geral” de Rousseau, coincide com o consenso em torno da autoridade política, do governo e da governança. As forças políticas da democracia liberal estão concentradas e unidas quanto ao mesmo fim, ainda que possam divergir nos meios de o atingir e na forma de acomodar as dimensões colaterais da crise sanitária, as suas “externalidades” – pois que em relação ao “combate” à pandemia não há lugar para a distinção política clássica entre amigos e inimigos.
Mas independentemente do alcance deste consenso excecional não só entre as instituições que disputam o poder como em relação aos que são afetados por este mesmo poder será imprudente – mesmo perigoso – deixarmos de lado os conflitos essenciais ao território político. É aqui que os conceitos de distopia e utopia adquirem vitalidade política, se voltam a inscrever de forma essencial na luta política, entre corpos, povos, lógicas e demandas antagonistas. É no seu “braço-de-ferro” que se joga todo o horizonte, todo o projeto, todo o futuro coletivo.
A distopia já aí está não tanto nas medidas de emergência estatais para conter a pandemia, para salvar vidas e mitigar o impacto nos sistemas de saúde, como nas relações de poder que aí se forjam, que aí se moldam, que aí se reconfiguram. Da mesma maneira que é já dentro do próprio estado de exceção que novas relações de produção se fazem emergir. O mundo moderno é esse mundo que resulta da confluência, da dinâmica entre as relações de poder e as relações de produção, entre as operações na governamentalidade (conceito emprestado a Foucault) e a dinâmica capitalista. O neoliberalismo é o conceito-chave que nos ajuda a decifrar e descrever a dialética entre estas dimensões que apesar de tudo são diferentes e relativamente autónomas uma da outra: a dinâmica política (ou governamental) e a dinâmica económica (ou capitalista).
O retorno à normalidade em Wuhan é a das trabalhadoras e dos trabalhadores controlados e da vida social vigiada. Os dispositivos ofertados pela medicina convencional e a biotecnologia, todo o aparato científico em torno dos saberes da vida biológica (para além do pleonasmo), aliam-se à militarização da vida quotidiana, ao policiamento, a uma conceção da política como exercício do poder e da dominação. Esta biopolítica, ou esta gestão da vida social a partir do substrato biológico penetra no tecido económico como reestruturação do aparato das relações de produção. O novo real já aí está não como um qualquer orientalismo exótico, alheio à nossa cultura liberal, mas como o conjunto de transformações na distribuição do sensível comunitário – para nos socorrermos do jargão de Rancière. Com a paralisação dos trabalhadores não-essenciais em atividades que implicam um fluxo de contactos presenciais permanentes (como as áreas afetas ao turismo e à restauração); a deslocação de uma parte substancial do trabalho no sector dos serviços para o regime de teletrabalho; com o risco de contaminação associado àqueles e aquelas que continuam a trabalhar nas atividades essenciais à vida coletiva e que vão desde as forças de autoridade, os profissionais de saúde, os trabalhadores da distribuição e do comércio a retalho até aos trabalhadores da recolha do lixo; a distopia já aí está sobre a forma de reconfiguração da geometria das relações de poder, das relações sociais e das relações económicas sob um mesmo regime, uma mesma polis.
A distopia já aí está com o imperativo policial de recolhimento obrigatório, feitas as compras de sobrevivência no supermercado, finda a hora de trabalho na fábrica que ainda continua a produzir, terminado o último passeio solitário com o nosso animal doméstico, despedaçada a fronteira entre o local de trabalho e a habitação privada, com o pânico instalado nas nossas mentes e nos nosso sentidos pelo medo de perdermos o emprego, de não resistirmos à crise económica colossal que está por vir, ou de sermos portadores de uma doença que nos pode matar ou matar quem mais amamos. A distopia já aí está não só na nudez política dos homens e das mulheres reduzidos à sua medida biológica, como na nudez das ruas, das avenidas e das praças, na nudez do espaço público como espaço de contacto, de reunião, e, fundamentalmente, de inscrição, acumulação e organização dos corpos, como expressão da força física do coletivo. Quando a vida social se resume e se confina aos espaços privados, quando os espaços públicos são reduzidos a espaços vazios, quando a liberdade de circulação mais do que policiada é militarizada, a palavra da resistência deve reaparecer com mais vigor do que nunca.
Apesar dessa rara confluência entre a vontade coletiva e os mandamentos da autoridade e das instituições públicas e políticas não devemos perder de vista a diferença entre a responsabilização popular e a obediência, entre o voluntarismo e o autoritarismo, entre a biopolítica e a defesa política da vida, entre a distopia e a utopia. Porque é justamente por meio da força dessa destrinça que podemos contrariar não só pulsões governamentais futuras como positivamente projetar a utopia, a comunidade do cuidado, da solidariedade, do trato. A sociedade mobilizada em torno da defesa política do comum para além da gestão biopolítica da vida social, da estratificação económica e da reprodução de novas assimetrias.
Podemos dizer que toda esta descrição é claramente contrafactual, que é distópica porque opera num amanhã que não se verificará, mas, e este é o nosso ponto, os dispositivos legais, a tecnologia, os recursos humanos, científicos e técnicos, o enquadramento político e os seus desdobramentos institucionais já aí estão disponíveis e a operar. No coração da crise, precisamente em tempos de exceção, de grande consenso sociopolítico, cabe-nos a nós, povo, cidadãos livres e iguais ante o Estado e os dispositivos de governamentalidade, aplacarmos a constituição da distopia respondendo com a utopia, isto é, com a autonomia e a autogestão da crise e para além da crise. A política encontra-se sempre neste jogo, nesta disputa, neste litígio, entre os desdobramentos das relações de poder segundo a lógica da governamentalidade e a contrarresposta cívica, a constituição de um corpo comum resgatado à igualdade e à liberdade radicais.
Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.