Para quem conhece um pouco desta realidade sabe que a ajuda alimentar não serve para absolutamente mais nada do que não o de não deixar ninguém adoecer de fome. Os cabazes não chegam para se gerir um mês; as famílias têm de escolher, pior, são forçadas a abdicar de uma ou outra refeição – é a política da sobrevivência na sua face crua e nua. A abdicação não é uma escolha, é uma consequência. A composição dos cabazes a grande maioria das vezes não preenche os parâmetros de uma boa alimentação. Se o facto de se basearem predominantemente em conservas é positivo para a preservação dos alimentos ao longo do tempo, por outro lado, ninguém come de forma saudável alimentando-se maioritariamente de enlatados.
É claro que ninguém põe em causa a boa vontade dos voluntários que procuram estender as suas mãos até ao mais recôndito dos lares. Claro que ninguém põe em causa o papel das associações de cuidado e de auxílio e a sua capacidade de colocarem comida no prato a quem perdeu tudo ou quase tudo. Mas esta realidade dever-nos-ia fazer refletir um pouco, não só sobre a relação entre o Estado e as ajudas de índole associativa (quer sejam mais institucionalizadas ou mais informais), como sobre as relações de propriedade. É a dignidade civil que é ferida quando alguém, ou alguma família, depende da caridade ou da boa vontade de terceiros. E, como escrevi, tal não fere o caráter de quem de boa vontade procura por todos os meios ajudar. Quando por motivos económicos, resultantes de uma crise como esta, alguém se vê privado da sua autonomia e da sua capacidade de autodeterminação económica é a sua própria cidadania que fica como que suspensa. O ajudado deixa de ser um ser socialmente vivente para se reduzir a um sobrevivente, a alguém para quem o seu bem-estar físico depende da boa vontade – arbitrária – dos outros. Por esta razão as associações de cuidado e de auxílio nunca se podem substituir aos mecanismos estatais de integração e inclusão social geridos pela força da lei, da sua universalidade, e, até, da sua orientação burocrática. Pese embora a suma importância das assistentes sociais que cruzam os caminhos entre o concreto, o caso a caso, e o procedimental, o normativo.
Por outro lado, não há como nos livramos das armadilhas da verticalidade do auxílio ou da caridade. E por mais que procuremos evocar as boas práticas e regras da solidariedade esta, como num jogo, permanece viciada à partida. É o comum que a todos e a todas falha quando as políticas de auxílio arrastam consigo relações de propriedade que as perseguem, que as condicionam e que as antecedem. Não se trata então de continuarmos a reproduzir os mecanismos de caridade entre um “nós” (de mais privilegiados, ou, pelo menos, de mais remediados) e um “eles” precários, pobres e miseráveis, em suma, sobreviventes. Trata-se de liquidarmos essa mesma distância implacável, entre a mão que estende e a mão estendida, e irmos fazendo, desde a base do auxílio mútuo até ao topo da regulação institucional, da “economia” de todos uma economia para todos.
Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.