O que une Marcelo Rebelo Sousa, André Ventura e Manuel Carvalho?

O que têm em comum as posições do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, do deputado André Ventura e do director do jornal “Público” Manuel Carvalho a respeito do “caso Marega”?

 Apesar da diferença em relação às instituições que representam, apesar das convicções que os separam e da finalidade das suas posições. Apesar de todas as distâncias as suas declarações políticas tocam-se na percepção da urgência – pelas palavras do presidente da república – de impedir qualquer “escalada”. Leia-se de impedir qualquer “aproveitamento político” por parte da esquerda radical (ainda que esta luta faça parte da agenda da esquerda radical), qualquer manifestação pública da parte dos activistas antirracistas e qualquer debate público sério e profundo sobre os fundamentos estruturais do racismo e o seu reflexo institucional. Alinhando-se ideologicamente, sem precisarem de se coordenarem entre si, Marcelo Rebelo de Sousa falou na necessidade de se evitarem “escaladas”; André Ventura, embora assumindo a condenação deste caso de racismo em particular, também não deixou de acusar de forma vaga a “hipocrisia” do governo na forma como celeremente reagiu a este episódio e de sublinhar que este caso de racismo em particular não nos permite extrapolações gerais, de endossarmos um hipotético “racismo estrutural”; por último, Manuel Carvalho, não querendo perder a face no que respeita ao seu combate à esquerda radical e aos activistas antirracistas, elogiou a atitude do jogador apelando de seguida à sensibilidade dos seus leitores social-democratas, liberais e moderados para debaterem o “problema” antes que este seja monopolizado pelas forças de esquerda. Em síntese, a coordenação ideológica destes três representantes do consenso social-democrata e neoliberal procura preservar uma certa ideia de “paz social” (uma ideia ideologicamente distorcida) à custa da isolação do caso e da sua consequente “gestão” paternalista.

A postura institucional dos três coincidi em três pontos. O de despolitizar todos os casos, fazendo destes casos únicos, casos excepcionais. Estancar o movimento de esquerda procurando desmobilizar os activistas e retirar apoio público aos partidos da esquerda radical. E, no seguimento deste dois objectivos, impedir que as instituições sejam confrontadas com os seus próprios limites, isto é, que não haja a tentação de ensaiar mudanças sistémicas. Quem ache que o combate ao racismo é uma questão consensual nas democracias constitucionais, e que por essa razão transcende as contendas partidárias, é melhor que comece a rever as suas análises. 

O esforço político – que se confunde com bom senso e sentido de justiça – em isolar os casos de racismo, de extraí-los das profundezas da sua inscrição nas estruturas sociais, é o passo politicamente decisivo para não enfrentarmos o que há de sistémico no racismo, o modo como este determinou e persiste em determinar o desenvolvimento das nossas sociedades europeias. O preço da recusa colectiva do enraizamento racial da sociedade portuguesa, que nos impede de compreendermos colectivamente o modo como a evolução da nossa sociedade coincide e se articula historicamente com o racismo, paga-se com o imobilismo social, com a incapacidade de rompermos com o estado de coisas, o sistema, o capitalismo, e, por consequência, de estarmos capturados pelas mesmas elites políticas e económicas que não estão interessadas em quaisquer mudanças profundas e duradouras.   

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Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.

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