Sean Dalmazo, a vítima dessa infame epidemia, deixou assente que quando morresse pretendia um “funeral político”. E sua mãe, seu namorado e seus amigos ativistas, uns seropositivos outros não, deram seguimento ao seu desejo. O filme é notável por várias razões mas o que aqui me chamou atenção foi essa necessidade de politização dos corpos num filme que mistura ficção com documentário. Cada corpo é uma espécie de constelação política. São os corpos que sofrem de violência e são também os mesmos corpos que se emancipam; que são corpos que expressam tristeza ou corpos alegres; corpos passivos e sedentários ou corpo ativos e efervescentes; corpos amolecidos pela dureza da vida ou corpos enfurecidos. Pelas marcas (interiores e exteriores; físicas e psíquicas) de cada corpo conseguimos traçar a genealogia das suas lutas sociais/políticas. O corpo marcado de cicatrizes de um indivíduo negro pode denunciar as marcas do racismo. O mesmo se passa com o corpo da mulher, não apenas quando é violentado pela força bruta machista, mas também quando é adestrado de forma a se tornar aprazível principalmente à cupidez masculina. O corpo oculto da mulher muçulmana coberta pela burca reflete a dominação patriarcal fundamentada em premissas religiosas. Também o corpo mutilado do operário fabril reflete os danos causados por um acidente de trabalho ou a simples exposição a um processo produtivo. A expressão “sair do armário” que simboliza a afirmação pública da orientação sexual do gay define também a importância da afirmação do corpo enquanto corpo homossexual. As designadas marchas de orgulho gay fazem parte desta estética dos corpos que é intrinsecamente política. A afirmação do corpo como corpo singular, heterogéneo, queer (esquisito), é uma afirmação contra a imposição de um modelo único de sociedade e de sua pretensa (e fascizante) normalidade.
A pergunta: “o que fazer com este corpo?” é uma pergunta inteiramente política que no caso do nosso personagem da organização política Act Up tem efeitos para além da sua morte. O corpo não é portanto o componente profano da vida humana que contrasta com o caráter sagrado da alma ou do espírito. A dualidade alma/corpo é um resquício religioso de que nos importa libertar em prol da libertação individual e coletiva dos corpos. O corpo é o tal campo de batalha que cada um de nós transporta ao longo da sua vida. A decisão sobre o que fazer com o nosso corpo em sociedade é, no limite, uma decisão sobre a vida e a morte, e, claro, sobre a liberdade ou a subjugação. Como diria esse grande filósofo da corporeidade, Espinosa: “o fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente – pode e o que não pode fazer”.
Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.