Relembro uma passagem de um livro de Hannah Arendt que a propósito do altruísmo, e, por extensão, da solidariedade, contrapõe o silêncio e anonimato da caridade cristã à publicidade e mediatização do altruísmo, nomeadamente na modernidade. Fazer o bem, ser solidário, é ser igualmente avesso a demonstrações públicas de solidariedade interessada, ou interesseira, que precisa de assinalar a virtude simultaneamente que subalterniza os auxiliados. A instrumentalização política da solidariedade, quando esta se faz depender do reconhecimento público dos altruístas, é o lado obscuro das proclamações, tão abstratas e vazias quanto seletivas e excessivamente precisas, de amor incondicional à humanidade. Afirmar que estas demonstrações de abnegação humanista nada têm de político, e que se movem exclusivamente na esfera das emoções coletivas, é uma armadilha que não nos permite, não apenas denunciar os hipócritas, como aprofundar a solidariedade para além das suas contingências políticas e respetivas instrumentalizações mediáticas.
Contrariamente a algumas leituras que se têm feito sobre o tema, não creio que a mobilização geral pela causa ucraniana, nomeadamente o gigantesco fluxo de refugiados que a guerra provocou e que continua a engrossar, tenha por sua causa primordial a pertença étnica, isto é, o reconhecimento de um sentimento positivo de pertença que faria do povo ucraniano um dos “nossos”, um membro pleno do “povo europeu” e, claro, da nossa “civilização”. Quer dizer, se de facto a predisposição coletiva para acolher de braços abertos as vítimas da guerra na Ucrânia se deve, de forma determinante, às questões da tez da pele e à cor dos olhos, nem por isso este reconhecimento por uma identidade devidamente racializada deixa de ser ele mesmo instrumentalizado política e mediaticamente. As questões dos limites ou fronteiras do nosso altruísmo coincidem com os limites ou fronteiras dos nossos interesses enquanto “povo” tendo em conta a distinção schmittiana amigo/inimigo. Que o digam os estigmas contra os migrantes dos povos do leste alimentados, no caso português, pelas então badaladas “máfias do Leste”, ou, de uma forma mais brutal, o homicídio de Ihor Homeniuk pelo SEF há dois anos.
É do nosso entendimento que a comoção geral pelos refugiados ucranianos, que mobiliza sociedade civil e instituições do Estado, deveu-se mais a toda uma construção mediática e política do que propriamente a uma identificação imediata e positiva de co-pertença, ainda que a questão da cor da pele, e de uma certa contiguidade ética e cultural, tenha facilitado sobremaneira esta discriminação no plano das emoções direcionadas e esta construção de uma identidade artificial. E brevemente veremos o quanto deste assomo súbito de humanismo incondicional tem pés de barro.
Aliás, já o estamos a ver, quando nas próprias fronteiras ucranianas se diferencia pela cor da pele quem entra nos comboios e quem não entra, ou quando continuam a chegar, bem mais perto das nossas fronteiras físicas, migrantes e refugiados africanos nas cidades portuárias de Melilla e Ceuta e que são recebidos, não de braços abertos, mas à lei do cassetete. A forma como o patronato, não só nacional como europeu, e os próprios Estados, têm agitado com milhares de postos de trabalho livres, que ninguém com o mínimo de segurança financeira e tendo outras alternativas profissionais quer ocupar, deve ser suficiente para desconfiarmos destas demonstrações intempestivas de hospitalidade sem condições. O que se torna claro com notícias como as de que os hotéis do Porto estão disponíveis para empregar mão-de-obra ucraniana nos sectores da arrumação de quartos e restauração (Diário de Notícias), ou com a forma expedita de como o governo, pela voz da ministra do trabalho, Ana Mendes Godinho, agilizou todo o processo de absorção de mão-de-obra fugida da guerra com o lançamento de mais de duas mil ofertas de trabalho. Caso para dizer, o capitalismo adapta-se muito rapidamente. Enquanto os racializados podem permanecer invisibilizados nas estufas produtivas do país, os ucranianos brancos têm a pigmentação requerida para poderem trabalhar em contato direto com o público, ou, pelo menos, para se tornarem mais “aceitáveis” por este.
Em cada país, em cada região, em cada distrito, em cada concelho, esta capitalização política da solidariedade em torno do “povo europeu” face ao tirano Putin e à sua afronta aos valores do iluminismo liberal, tem contribuído, por seu turno, para a despolitização no que respeita à crítica do verdadeiro conteúdo destas correntes civis e institucionais de solidariedade e dos seus efeitos políticos concretos. Que o diga Boris Johnson a quem esta maldita guerra como que lhe caiu no colo num momento em que acossado por todos os lados, por conta da presença numa festa nas circunstâncias em que pedia aos britânicos que ficassem em casa, precisava de uma saída que apagasse definitivamente da agenda mediática a polémica em que estava enterrado até ao pescoço.
Também na realidade que me é próxima, no concelho onde resido, a autarquia tem-se desdobrado em esforços – e bem! -, quer para o envio de mantimentos aos civis na Ucrânia, quer nas demonstrações coletivas de afeto ao povo ucraniano, ao mesmo tempo que aplica cobranças coercivas na ordem dos quatro mil euros em rendas à comunidade cigana residente num dos bairros municipais. A coerência não parece ser de facto o valor mais compatível com esta vaga de abnegação ocidental.
Enfim, face a esta inflação de solidariedade empolada mediaticamente com vista à obtenção de efeitos políticos muito concretos, nomeadamente transformar a guerra na Ucrânia num verdadeiro choque de civilizações, onde, de um lado, temos o “nosso modo de vida” com toda a sua panóplia de valores judaico-cristãos, e, do outro lado, a reencarnação de Hitler, o mal absoluto, e, claro, a barbárie e o obscurantismo cultural. Ainda que, e como as elites europeias o bem sabem, a Rússia, e a língua russa em particular, seja a terra de Tolstói, de Dostoievski, de Tchekhov, de Gorki, de Eisenstein, de Vertov, de Tchaikovsky, de Prokofiev…
Como esta predisposição seletiva em relação àquele que é o objeto da nossa solidariedade nos demonstra à saciedade, a solidariedade é também ela um elemento vital da política à qual não deve ser subtraída a nossa capacidade crítica. Pelo contrário, é preciso denunciar-lhe os seus limites, e toda a hipocrisia e instrumentalização política que os justificam, para tornar o princípio da solidariedade entre os povos verdadeiramente universal e para que esta solidariedade possa ser ela mesma disputada para além das suas demonstrações contingenciais, da sua precariedade existencial, das suas premissas e/ou enviesamentos racistas, enfim, para além das nossas necessidades materiais concretas enquanto “povo” face a todos os outros povos com os quais partilhamos não apenas as nossas fronteiras ou o nosso continente, mas o mundo.
Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.