Crime sem castigo na televisão-espetáculo?

“Depois de se mostrar incapaz em agir, por imperativo ético, contra as demonstrações de violência doméstica em detrimento das audiências, o canal televisivo ainda deixa à livre deliberação do “mercado”, do auditório, a decisão se o agressor deve ou não ser penalizado, ou, se, pelo contrário, o “espetáculo” deve continuar”

Pelo que li nas notícias a TVI não teve a coragem, nem a verticalidade, para fazer a única coisa que lhe competia em respeito ao comportamento de Bruno de Carvalho, e que era, nada mais, nada menos, do que o expulsar do “jogo”. Seria bom que a isso acrescentasse pedagogicamente que no programa não seriam, de todo, aceitáveis comportamentos tóxicos do mesmo tipo, nomeadamente em contexto de relação de namoro. Ao invés disso a TVI ainda conseguiu a proeza de piorar uma situação em que devia ter sido a primeira a atuar, a primeira a não permitir comportamentos deste tipo em contexto de “reality show”, aliás, seja em que contexto for. Agindo proativamente antes ainda do caso ter ganho a dimensão que ganhou culminando numa queixa ao Ministério Público por parte da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

A TVI “chutou” a decisão de expulsar ou não o concorrente para a famosa “gala”, isto é, para essa espécie de tribuna popular que, de acordo com a volatilidade dos seus humores, decide, não sei com que periodicidade, sobre os destinos dos concorrentes em competição. Quer dizer, depois de se mostrar incapaz em agir, por imperativo ético, contra as demonstrações de violência doméstica em detrimento das audiências, o canal televisivo ainda deixa à livre deliberação do “mercado”, do auditório, a decisão se o agressor deve ou não ser penalizado, ou, se, pelo contrário, o “espetáculo” deve continuar. É já tudo demasiado mau, mas a diretora de programas do canal, Cristina Ferreira, ainda consegue piorar toda a situação mitigando as acusações de violência fazendo-as diluir no contexto do jogo.

Afinal todos ali são jogadores, e aquilo a que se vem assistindo, quer direta, quer indiretamente, pode fazer parte de alguma “estratégia” dos players em causa. Para cereja no topo do bolo defende-se ainda com uma pretensa tentativa de ser “imparcial” dentro de uma situação em que as pessoas/jogadores estão “expostas”, anulando com essa atitude não apenas a assimetria da relação em causa pela demissão do dever de tomar a parte da vítima contra o agressor, como se escusando a quaisquer responsabilidades, arrogando-se assim ao mesmo direito de “imparcialidade” definido simbolicamente pela distância da espectadora em relação a todo este “espetáculo”. O problema desta falácia é que, infelizmente, o que assistimos durante estes dias enquanto concidadãos não foi a uma novela, nem a uma ficção de qualquer outra índole. Valha-nos um serviço público televisivo de qualidade onde as audiências, e a mercantilização das relações sociais, não são o primeiro e último desígnio na produção de conteúdo.

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Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.

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