Fascismo inorgânico e a ascensão da extrema-direita

No programa “Mundo sem muros” pude ouvir o jornalista Miguel Szymanski partilhar da sua justíssima indignação com o facto de uma professora da sua filha (creio que de onze anos) a ter admoestado por a ter surpreendido a falar com uma sua amiga em alemão quando, na lógica primata da professora, em Portugal se deve falar em português.
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Foto de wirestock (EnvatoElements)

A filha do jornalista ligou ao pai a perguntar se tal proibição era legal ao que obviamente o pai respondeu que não. Referindo-se a este episódio com a sua filha o jornalista, de pai alemão e mãe portuguesa, evocou a memória histórica da proibição de falar em público outras línguas – – como o judaico iídiche – – após a implementação do regime nazi. A partilha deste episódio veio a propósito da ascensão da extrema-direita que em Portugal foi particularmente galopante. E a verdade é que as condições para o crescimento desta força no nosso país já existiam aguardando apenas pelo seu líder carismático e pelos instrumentos, nomeadamente tecnológicos, “à altura” da sinistra empreitada, a qual, verdade seja dita, também só se tornou particularmente fulgurante pelo fascínio e permissividade dos meios de comunicação social dominantes em relação ao fenómeno.

Como se ouve na canção: “O fascismo é uma minhoca (não é? lá isso é) que se infiltra na maçã (não é? lá isso é) ou vem com botas cardadas ou com pezinhos de lã”. E aquilo que denominaremos por “fascismo inorgânico” aguardava apenas pela voz do seu líder (essa espécie messiânica investida da aura de “salvador”) para se institucionalizar. O fascismo inorgânico não coincide exatamente com a menoridade intelectual e cívica com que muita da esquerda, no esforço de racionalizar o fenómeno ou o adoçicar, procura etiquetar. O populismo de direita não é do domínio do irracional ou do bestial, bem pelo contrário, ele procura reforçar a inteligência e intuição práticas da vox populi. Se o Ventura “diz as verdades” (o que é estranho dado ser um grande promotor de fake news) ou, pelo menos, “diz aquilo que a gente comum pensa”, é porque ele procura verbalizar o senso comum existente. O papel do Ventura vive do paradoxo de, por um lado, liderar a multidão e, por outro lado, de se confundir com ela. Se o discurso populista penetra tão eficazmente na população não é porque ele seja propriamente alucionado mas, ao contrário, por ser bem compreensível, por ser um discurso fácil e apelativo que se alimenta de visões maniqueistas do mundo. Se o Ventura parece um líder quase imparável é porque ele atua dentro de um quadro não de irrazoabilidade mas de razoabilidade. E para muita gente ressoa, p. ex., o discurso de que é preciso “controlar” a imigração (mesmo jurando a pés juntos que não se é contra os imigrantes ou que não se compactua com a sua subalternização); ou que os perpetradores dos crimes mais hediondos devem ter uma moldura penal ao nível dos seus crimes (mesmo sabendo que essa proporcionalidade é verdadeiramente impossível); ou promovendo a mirífica ideia de que é possível baixar impostos a toda a gentes, particulares e empresas, ao mesmo tempo que se aumenta ferozmente a despesa pública. O fascismo do Chega deve a sua eficácia ao facto de atuar dentro dessa espécie de regime de Verdade que faz das pessoas mais alarmadas com a eventual ameaça aos seus privilégios relativos dentro do regime das desigualdades sujeitos predispostos à sedução da cantiga do bandido.

Se assumirmos que o fascismo larvar, inorgânico, não é um fenómeno incompreensível, da ordem da loucura coletiva (mesmo que em boa medida até o seja…), mas uma expressão até de algum “bom senso” comum talvez possamos começar a acreditar que a exigência de radicalidade no combate ao fascismo é a única forma de o banir de vez das nossas vidas. O fascismo é um espectro, um fantasma, de que é preciso a sociedade ser capaz de coletivamente exorcizar.

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Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.

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