Mais uma vez, o capitalismo em crise. Mas, desta vez, parece-me que a crise tem uma natureza diferente que, por seu turno, lhe pode dotar de contornos políticos diferentes. A crise não é tanto uma crise dentro do ciclo do capital (produção – reprodução – acumulação), ou uma crise imanente ao seu regular funcionamento, quanto uma crise provocada pela ação – ou inação – de uma parte da classe trabalhadora. Precisamente essa parte da classe trabalhadora onde cabe o proletariado. São os trabalhadores “indiferenciados”, de baixas “qualificações” e que auferem os mais baixos salários na pirâmide do trabalho assalariado. Não são propriamente lumpen, essa multidão que se arrasta à margem dos ciclos de extração do capital, cujos corpos não são contados pelo capitalismo; pelo contrário, são trabalhadores indiferenciados que preenchem as funções vitais da sociedade e sobre os quais é possível o capitalismo poder continuar a funcionar como reprodutor – e legitimador – da desigualdade e da hierarquia social. São os trabalhadores “pouco qualificados” que não pararam durante a pandemia para que a burguesia e a aristocracia laboral pudessem preservar o seu modo de vida.
No rescaldo da crise pandémica global são estes trabalhadores do mundo ocidental (não tenho notícias sobre o mundo oriental) que estão a tornar insustentável o modelo económico imperial. E o mais politicamente promissor nesta crise é que ela resultado da própria in(ação) do proletariado, nomeadamente da sua recusa radical em aceitar o retornar aos seus empregos de merda (expressão icónica de David Graeber). O problema não tem qualquer reflexo antropológico ou moral, não é uma crise que divide os países do norte relativamente aos países do sul, pelo contrário, é uma crise do modelo neoliberal globalizado que tem percorrido, pelo menos, todo o mundo ocidental. Assim, a incapacidade das empresas dos empregos de merda fazerem retornar a mão de obra aos seus postos de trabalho é igual num país da periferia da europa, como Portugal, como o é numa das maiores economias do mundo como os Estados Unidos da América. E haverá algo mais politicamente subversivo e potente do que a recusa massificada por parte da classe trabalhadora em regressar “aos seus postos de trabalho”, recusando assim a disciplina capitalista, as condições cada vez mais degradantes e indignas de trabalho, resultantes da universalização da precariedade e da estagnação salarial, ao mesmo tempo que as desigualdades económicas se brutalizam como nunca?
Podemos inventariar múltiplas hipóteses para esta “demissão generalizada” e sobre a sua sustentabilidade económica, nomeadamente os níveis de acumulação de riqueza nos países ditos “desenvolvidos” que permitem ao proletariado sobreviver sem cair ainda na miséria absoluta, sem ser forçado (ainda) a vender a sua força de trabalho. Podemos pensar nas múltiplas formas de economia informal e de solidariedade intra-classe que permitem ao proletariado se subtrair às dinâmicas do sistema capitalista. O que nos parece mais ou menos certo é que as réplicas económicas, sociais e políticas do choque traumático da pandemia estão ainda longe de terminarem e que a restauração do capitalismo em direção a formas cada vez mais invasivas e irresistíveis de exploração também não é uma fatalidade inscrita no pessimismo próprio do capitalismo tardio. Um campo de novas lutas de classe tem vindo a desdobrar-se diante dos nossos olhos incrédulos e, talvez mais importante ainda, é que este campo tem o proletariado e o seu ímpeto transformista como protagonista, e não os mesmos cadáveres adiados da política do consenso demoliberal ou do impasse ideológico: capitalismo ou socialismo.
Se a burguesia cava a sua própria sepultura talvez nós estejamos a presenciar um desses momentos como um momento histórico nas nossas vidas transitórias.
Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.