Uma espécie de tributo

Chullage
Chullage

Não conheço pessoalmente Chullage. Fui a dois concertos dele em Viseu e acompanho a sua música basicamente desde sempre. Na verdade, creio que não acompanhei com tanto afinco nenhum outro músico português como fui acompanhando Chulla. Digo “fui acompanhando” porque com o tempo acabei por deixar de seguir o movimento do rap tuga, ainda que mantendo sempre o olho aberto para aquilo que o Chulla lá ia lançando – seja por via do lançamento de discos da sua autoria, ou pelas suas mais diversas participações em discos coletivos e individuais de outros tantos camaradas da música portuguesa. 

Posso dizer que a forma de como me fui desvinculando do movimento foi por resultado de importantes transições na minha vida como a entrada na universidade. A entrada da universidade correspondeu para mim (um rapaz do Interior) à abertura para outras tantas referências culturais e para a inclusão em novos grupos de amigos e amigas com outras tantas representações e hábitos musicais, literários, cinematográficos… Se a Universidade serviu bem para alimentar e dirigir a minha insaciedade omnívora para tão díspares práticas artísticas com outras tão singulares origens e tradições, nem por isso a Universidade deixou de atuar como uma espécie de iniciação/aculturação a mais distintas classes e elites: neste caso, como iniciação à elite intelectual. Há medida que ia assimilando a educação desta classe (a sua linguagem, os seus hábitos culturais, os seus maneirismos, a sua ironia, a sua distância e crítica…) ia também perdendo um pouco daquilo que eram as minhas referências de origem, o meu “solo” de classe. Talvez se possa dizer que a Universidade contribuiu para o meu sucessivo aburguesamento, ainda que apenas cultural, já que por efeito de décadas de precarização do trabalho científico essa transição nunca teve um efeito económico ou social – apesar de “ter” um doutoramento continuo sem trabalhar “na área”. 

Neste contexto ouvir rap seria visto como um ultraje ao que a nobreza da condição de universitário exigia – mais ainda como estudante de artes e letras, a quem se pede um gosto mais requintado e que se preste o devido culto ao “alternativo”, mais do que ao espírito crítico ou de contradição, ao não-plebeu. Mas o Chulla lá ia fazendo o seu caminho, depurando a sua linguagem à medida da evolução da sua consciência política e social, reinventando as métricas na medida em que esta reinvenção pudesse aprimorar o compromisso que desde sempre o ligou ao ofício de músico, nessa reapropriação contemporânea das antiguíssimas tradições orais que testemunhavam lendas e formas de vida, que relatavam a quotidianidade e a relação plebeia com o transcendente, com as instituições e com o poder. E tal como na tradição oral, cabe aos seus ouvintes a missão de perpetuar essas mesmas estórias, adicionar-lhes um ponto, responder e completá-las com outras histórias e com tantos outros testemunhos literários. 

É esse elo, esse compromisso literário/político/democrático, que liga cada canção e cada álbum do Chulla ao longo de toda a sua produção, e liga também os fãs como eu a tudo o que por este foi sendo produzido. Em Chulla o rap nunca deixa de abandonar o sentido e a missão que lhe foi destinada desde os seus primórdios. Verbalizar a condição dos marginalizados, dos racializados, dos oprimidos, dos pobres… em suma, da classe proletária e/ou da realidade plebeia. Em Chulla o rap nunca deixa de corresponder à sua tripla função de intervenção social, de música e de literatura – não interessa a ordem. Na tradição do rap tão culta e conscienciosamente assimilada por Chullage o rap não é um amplificador do ego do rapper, é luta política por outros meios, é narrativa dos mais fracos, o fundo comum onde se procura/trabalha a solidariedade por entre os que se refletem e se reconhecem por entre as mesmas rimas e as mesmas batidas.     

Contrariamente a Noam Chomsky a minha consciência política não se formou logo na infância, como este o testemunhava no documentário de Michel Gondry em que dizia que aos cinco anos de idade já se sentia anarquista. Mas se a consciência política na minha puberdade era praticamente nula, isso não feria a plena consciência da minha condição social. Não ainda a de proletário, mas a de pobre. E o rap do Chulla não apenas respondia com substância imagética às púberes representações de uma vida marginal e aos naturais anseios de adolescente por uma vida resgatada ao peso de pau ou de aço da autoridade, como de alguma forma lá ia dizendo “a verdade” sobre a nossa condição. A nossa condição de proletários e/ou pobres que partilhávamos – ou podíamos partilhar, pelo menos pelo fundo comum da narrativa e da nossa condição de plebeus, de coabitantes da miséria e do sofrimento alheio – com as mulheres vítimas da violência machista, com os sujeitos racializados, com os migrantes que partem do seu país na procura por uma vida melhor, com a exploração laboral. 

Estava ali tudo, nenhuma canção era despicienda, nada era feito gratuitamente ou com o intuito de agradar o mercado e fazer aumentar o número de vendas. Fazia-se boa música, não porque esta pudesse vender mais, mas porque esse era o sentido do trabalho artístico e do compromisso com a comunidade, com o coletivo. Fazia-se evoluir a música na medida da evolução da consciência social e política, de um olhar sempre atento e crítico em relação à contemporaneidade. Fazia-se, em suma, da música um lugar de intervenção política ou da intervenção política o lugar para a música. Mais, fazia-se da música um modo de estar na vida, de intervir na polis, de partilhar mundo e, principalmente, uma forma de poder abraçar todos os que se reconhecem no chão comum do mesmo quotidiano proletário ou plebeu – apesar e contra as dimensões não partilháveis das mais diversas formas de violência estrutural.      

Por tudo isto posso dizer que Chullage foi o meu “educador de classe” e que o seu rap é uma forma de contrapoder e de contra-hegemonia.  

Outros artigos deste autor >

Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts

Escalando a montanha

Serra da Estrela | Foto de António da Silva Martins | Flickr“A sociedade humana é o resultado histórico…

Porquê a Política?

Foto de Paula Nunes | Esquerda.netPorque política é amor, a verdadeira, aquela que se justifica para que muita…
Skip to content