Como se constitui o corpo fascista?

“No Al Fascismo!“ Bush/Hitler Sign in Cuba 2003 – Foto de Chris Goldberg | Flickr
Os fascistas escolhem os seus objetos de ódio, os bodes expiatórios que servirão para a sociedade poder purgar todos os sofrimentos e opressões de que foi, de que é, de que espera vir a ser alvo.

 Este processo de eleição dos objetos de ódio – e que perfaz a tática fascista por excelência – não é puramente original e/ou artificial, no preciso sentido em que a direção do ódio é operada consoante os preconceitos sociais já enraizados, já latentes. Estes objetos de ódio são objetos marginais relativamente ao social, relativamente às verdadeiras estruturas da opressão e à dominação, na verdade são objetos totalmente insignificantes no que respeita à luta contra essas mesmas estruturas. São a Joacine Katar Moreira, o Mamadou Ba, a comunidade cigana, a comunidade LGBT, o PCP, o BE… Estes mecanismos de destilação do ressentimento e do ódio servem, na verdade, para direcionar a inimizade política do comum para alvos que não são o centro dos problemas, quando, pelo contrário, estes alvos são as suas primeiras e principais vítimas. 

A função do ódio nas comunidades políticas é o de reequilibrar o corpo político, ou de lhe devolver a solidez que este corpo de alguma forma sente ter perdido. Mas que corpo? Quando o nosso objeto de ódio é o sujeito racializado (ativista e não ativista), ou os partidos de esquerda radical, ou os homossexuais, ou todos estes em simultâneo como um único objeto/corpo comum, percebe-se que o corpo que se procura defender e se reafirmar é o corpo branco, burguês, europeu, masculino e heterossexual. Quando a política parece chegar a um impasse, ou quando o pacto social parece desmoronar-se, ou quando se assiste à falência dos bens comuns, ou quando se vive a angústia da impotência política, a última e derradeira resposta que resta ao comum branco, burguês, europeu e heterossexual é o de reafirmar a sua identidade imputando a sua fragilidade identitária e social ao Outro que habita as suas margens. O ódio nunca é totalmente cego e irracional, a sua razão reside no paradigma, na política como definição da fronteira entre o nós e os outros, na necessidade de se construírem diques que protejam a parte dominante do paradigma face à ameaça do colapso ou da degradação dos seus modos de vida, do seu bem-estar. 

A pergunta fundamental – qual o teu objeto de ódio? – retorna em toda a sua pertinência política quando assistimos a esse desequilíbrio tão violento entre a distribuição social dessas paixões negativas. Afinal, qual a razão que nos leva a não investirmos o ódio que investimos em Joacine em detrimento de Ventura? Ou de Mamadou em detrimento do mesmo Ventura? Qual a justificação para a sanha contra o PCP que escolhe consciente e conscienciosamente realizar o seu congresso cumprindo todas as normas da DGS, e a quase inexistência de hostilidade no que respeita ao congresso do Chega que faz questão de as não cumprir e que milita mesmo contra o uso de máscara? Qual a razão da disparidade no escrutínio em relação à atividade política de Joacine por comparação a qualquer outro dos deputados e deputadas da assembleia da república? Qual a razão para a disparidade de reações entre uma frase proferida por Mamadou Ba no contexto de uma discussão teórica sobre o racismo e um deputado da República ter mandado duas vezes uma outra deputada eleita para a “sua terra”?

O principal efeito das táticas do ódio político não é apenas a de excluir franjas significantes da sociedades ao mesmo tempo que dá coesão a um determinado sujeito político, neste caso o sujeito racista. O principal efeito é o de continuar a erodir toda a possibilidade de construção de um horizonte de comum através da ilusão de um devolver de sentido de comunidade, ainda que um sentido fechado. É evidente que não são os sujeitos racializados, nem os bloquistas, nem os comunistas, nem os homossexuais, os responsáveis pela opressão e sofrimento que chega a atingir a classe trabalhadora branca em contextos depressivos ou de falência da resposta social, mas esta classe, ao transformar esses sujeitos em objetos de ódio, pode assim continuar a perpetuar a sua alienação política à condição de lhe serem assegurados os bens básicos que lhe permitem continuar a viver, ou, pelo menos, a sobreviver. A ideia de corpo político, como povo ou como nação, volta a ganhar vitalidade através do recorte que faz por via dos seus objetos de ódio, do seu Outro enquanto inimigo político. A fórmula-fascista é só a consumação deste corpo.  

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Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.

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