A política opera sobre a distinção amigo/inimigo. Quando esta distinção não se dá não há propriamente política. O amigo separa-se do inimigo na medida em que os seus interesses são inconciliáveis, nenhuma negociação torna possível alguma forma de consenso ou de convergência. O amigo e o inimigo são pólos radicalmente antagonistas e quando se encontram só um pode sobreviver à conta da aniquilação do outro. Não há conciliação política possível entre o colonizador e o colonizado, entre o imperialismo ocidental e as lutas nacionais pela libertação, da mesma forma que não há conciliação política possível entre o capitalismo e o comunismo, um vive da aniquilação do outro, o mesmo que dizer: ou capitalismo ou comunismo.
É claro que este maniqueísmo choca com o idealismo liberal que se move pela capacidade de gerar consenso entre partes com interesses conflituantes. Mas mesmo o liberalismo, particularmente quando desce da sua nuvem ideal, se transforma no inimigo mortal daquilo que tantas vezes designa por ideologias totalitárias, particularmente o comunismo. O comunismo é o inimigo mortal do liberalismo porque o desmistifica, porque lhe assinala os limites, porque, inclusive, afirma que as condições para a realização plena do liberalismo político, acompanhada pela emancipação geral dos povos e dos trabalhadores, depende da desconstrução de toda a filosofia liberal.
Nesta guerra que tristemente assistimos pela mediação de todos os ecrãs o inimigo mortal dos “moderados”, dos herdeiros do consenso, dos defensores intransigentes do “nosso modo de vida” e dos “nossos valores”, da “nossa civilização” e da nossa “democracia liberal”, é a Rússia. Mas a Rússia de Putin é mais do que a sua realidade estritamente geográfica, é metáfora para todo um mundo que se recusa a alinhar com os nossos interesses materiais. Os inimigos são, na verdade, todos os “bárbaros” do sul global, os não-alinhados, os que se recusam a dar a sua vida pelo modelo único das democracias ocidentais. A distinção amigo/inimigo que é realizada por esse espaço político a que podemos designar “a direita” – para lá de todas as distinções e respetivas nuances ideológicas – tem como traço fundamental a distinção étnica entre amigo e inimigo, o “nós” e os “outros”, até ao limite da construção artificial de um verdadeiro choque civilizacional. E é a esta luz que se compreende como a causa do povo ucraniano se transformou numa causa vital aos interesses do norte global, ainda que essa vitalidade não tenha sido capaz de se estender, com igual força e determinação, a todas os outros palcos de guerra no mundo. Em que medida os palestinianos, os afegãos, os sírios, os iraquianos, fazem menos parte do “nosso mundo” do que os ucranianos? Se respondermos a esta pergunta com a questão cultural, com o modelo político, com a proximidade geográfica, com a identidade etno-racial, mais não estamos a fazer do que a operar a tal distinção amigo/inimigo encerrando-nos na defesa do nosso mundo face a todos esses “outros”. A unidade política realizada através da construção de uma unidade étnica é a continuação do racismo por outros meios e a precipitação para a militarização da UE apenas vem aclarar do que realmente se trata: de defendermos a nossa unidade como espaço vital diante de todas as investidas dos povos que se situam do lado de fora das nossas muralhas, da europa-fortaleza.
Já no que respeita ao espaço político “da esquerda” a distinção amigo/inimigo realiza-se através, ou, melhor, por dentro das questões de classe. O inimigo absoluto não é a Rússia, nem é o sul global, como não é o ocidente enquanto realidade estritamente geográfica, é o capitalismo na sua fase imperial. São as burguesias de todo o mundo, os Estados que as servem e todos os dispositivos de governação que são mobilizados para a realização do capital. Principalmente a realidade do atlântico-Norte que é a realidade da matriz colonial e neocolonial do “resto do mundo”.
Onde a direita depende das fronteiras étnicas para realizar os seus interesses materiais, para se realizar enquanto unidade histórica, a esquerda abole-as para se identificar com as classes trabalhadoras exploradas pelo capitalismo e com os povos oprimidos de todo o mundo a quem o direito à autodeterminação lhes é sistematicamente negado. E é por isso que estar do lado certo da história nesta guerra não é só estar contra Putin, nem só contra a NATO, como radicalmente a favor do proletariado de todo o mundo e de todos os povos oprimidos pelos dispositivos coloniais, principalmente os do “ocidente”.
Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.