Um aparente paradoxo define as sociedades modernas: a sua maior politização corresponde à sua proporcional maior despolitização. Quanto mais o poder dos Estados expande o seu alcance, exibe a sua força e intensifica o seu impacto mais a capacidade da contrarresposta civil é mitigada. O Estado de exceção é a suspensão da vida política civil em prol do unilateralismo do poder do Estado. Em tempos de exceção a política cristaliza-se inteiramente nas estruturas e nas instituições do poder subtraindo todo o espaço à resistência, ao contrapoder. Na verdade, é justamente em tempos de exceção que o eclipse da política é substantivamente maior por conta dos diversos modos de repressão e/ou contenção das liberdades civis e do aniquilamento da potência democrática, do poder do povo, do enfraquecimento dos laços solidários naturalizados entre os membros de uma determinada comunidade política.
Em tempos de pandemia os cidadãos são reduzidos à sua essência biológica. Reduzidos à sua nudez física, a meros corpos a serem vigiados politicamente, tutelados administrativamente e controlados medicamente. Nessa nudez reside o segredo da potência dos Estados relativamente ao poder político refletido enquanto biopolítica, enquanto gestão da vida humana. Na biopolítica o processo de atomização dos humanos é levado ao pormenor genético. O Estado, através dos dispositivos médicos e do respetivo saber transmitido pelas ciências naturais, não apenas controla e manipula externamente os corpos como divide aquilo que até há pouco mais de um século era indivisível e soberano: o corpo de cada um e de cada uma.
O paradoxo da absoluta contingência, do estado de exceção, é que requer, justamente por essa característica, a absoluta necessidade. É justamente em tempos excecionais, em tempos politicamente singulares, que as liberdades e garantias individuais são constrangidas na medida da necessidade requerida pelo Estado – essa necessidade por ser mais ou menos real ou mais ou menos artificial. O Estado de crise cria e legitima a sua própria necessidade, nem que isso implique a destituição da vida civil, dos direitos e garantias civis.
Relativamente às ameaças à comunidade politica enquanto refletidas individualmente, estas ameaças são sempre ameaças externas – ameaças que vêm de fora. Seja uma crise financeira, uma crise de saúde pública, uma ameaça terrorista ou uma invasão territorial por parte de outro Estado-nação. Se a ameaça é sempre externa do ponto de vista do cidadão, o que faz o poder, a governança, é converter essa ameaça externa numa ameaça interna, nomeadamente por via dos mecanismos da interiorização da ameaça. Para o poder policial, o poder vigilante, de controlo e de punição, cada um e cada uma de nós é uma potencial ameaça à boa ordem civil, é um inimigo da ordem política. Essa capacidade de transformar cada cidadão e cidadã num potencial inimigo público por via da destituição da sua capacidade civil, da sua redução a um mero corpo sem identidade, é a essência da biopolítica.
Por outro lado, os tempos de exceção são tempos que suspendendo as relações sociais e económicas normais, o dia-a-dia rotineiro, e ao retomarem o primado da política (enquanto ação) e do político (enquanto agente) sobre a vida social e económica, desvelam, através da nudez ou da destituição civil que provocam, os limites da própria necessidade política, da política enquanto necessidade. Por estes dias, em que a vida está suspensa pelo medo do contágio e da morte iminente, descobrimos que a normalidade é afinal uma ficção e a necessidade é que é o real. O que demonstra esta realidade é que é possível organizarmo-nos coletivamente mesmo quando tudo desaba, quando as bolsas caem a mínimos históricos, quando as relações laborais são suspensas, quando as instituições públicas são encerradas ou mantidas em serviços mínimos, quando o comércio paralisa… Espero que quando isto tudo acabar, quando o surto terminar com o menor número de vítimas possível, que nos voltemos a lembrar que é possível pararmos o país, a europa, a economia mundial, que é possível interrompermos as engrenagens que nos mantêm acorrentados à economia moderna, que a política é o horizonte do possível e não do “there is no alternative“. No horizonte da insurreição revolucionária o que podemos esperar é que a política não seja uma resposta a uma necessidade provocada pelo estado de coisas, pelo real, mas um ato criativo da vontade.
Para além da manutenção no quadro da luta diante do precipício da crise epidémica é preciso operar no horizonte em que não estamos condenados a nenhuma realidade, que não há mundos políticos fechados. Que a nossa absoluta impotência política implica dialeticamente a nossa absoluta potência política. Quando a despolitização é total, quando somos reduzidos a absolutos objetos do poder e da vontade política, quando os elos que nos uniam à esfera pública (enquanto atividade cívica) e ao Estado (como esfera de um poder limitado) são definitivamente desfeitos (como numa realidade totalitária), nenhum compromisso nos atém aos negócios públicos, ao Estado, não sendo a pura força, a pura gestão dos corpos e da vida, a pura repressão.
Diante do obscurecimento da política pela orgânica biopolítica torna-se necessário fazer retornar o Príncipe ao Império, isto é a vontade política tomada enquanto ação democrática. O Príncipe que através da sua virtude (virtù) cria uma nova situação, uma nova realidade política. Face a um poder policial que visa a despolitização por todos os meios, que “faz viver e deixa morrer” (parafraseando Michel Foucault), que suspende a liberdade cívica e sacrifica o poder democrático em nome da resolução de todo o tipo de crises, é preciso fazer retornar o Príncipe ao seu “castelo de cartas”. Porque a mensagem antidemocrática fundamental é que sem o Estado não somos nada, estamos paralisados, esvaziados de potência.
A governamentalidade nas sociedades atuais dissimula o Príncipe, o sujeito que detém o poder. A governamentalidade difunde-se, dilui-se articulando-se por uma miríade de micropoderes. A crise epidémica não é mais do que o prolongamento da política da governamentalidade por outros meios. O que há são dispositivos governamentais que ao serem postos em movimento mais não fazem do que através das suas diversas mutações preservarem uma mesma forma de ação política como dominação, como Império do heterónomo, da política elevada e simultaneamente reduzida à governamentalidade, ao Estado político como Estado policial (Jacques Rancière).
Vivemos enquanto sujeitos políticos como sujeitos de crises, de contingências que transformam os nossos hábitos, os nossos comportamentos, as nossas crenças, a nossa liberdade. É claro que o pensamento libertário paralisa diante daquilo que é a exigência de autoridade e de organização vertical para resolver um problema como uma epidemia. Mas o futuro pós-corona deve necessariamente retomar a tradição política moderna da expressão da vontade, do retorno do Príncipe e da política não só como agência mas como expansão da potência criativa dos homens e das mulheres.
Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.