Assistiu a toda a palestra sentado a um canto ao fundo da enorme sala de conferências. Nunca tinha estado num lugar como aquele. O salão era amplo, fresco e, ao mesmo tempo, austero e de uma formalidade férrea. Era um lugar bastante arejado, silencioso e calmo, e, no entanto, Jonas não podia deixar de sentir que de alguma maneira não pertencia ali. Não era só pelo aspeto do restante auditório, a indumentária rigorosa, as camisas de fino corte, muito lisas e de tecido sóbrio, as calças de fazenda ou de sarja, um ou outro com um excêntrico chapéu de palha com uma fita bege à volta. Não sei, era o ambiente. O ar impregnado de afetação, maneirismos e artificialidade. Aquele sítio fazia-lhe lembrar outra forma de ilha, uma ilha para intelectuais e profissionais liberais. Em cima do estrado Samuel andava às voltas a uma maquete, o projeto daquilo que chamava um novo complexo comunitário. Jonas não percebia nada daquela merda. Mas não deixou de fixar as palavras que Samuel mais repetia e que, de alguma maneira, a ele também lhe faziam sentido: inclusão, sentido de pertença, igualdade, justiça, belo, equilíbrio, ambiente.
Ao vê-lo ali no palco não reconhecia aquele Samuel. Não era aquele ser seráfico que idealizara. Pelo contrário, parecia-lhe bastante mais mundano – não vulgar mas terreno. O olhar distante cedera lugar a uma assertividade galvanizadora. Tinha qualquer coisa de hipnotizante, a fé com que falava. Jonas não podia garantir que ele estivesse certo ou errado, mas não era difícil acreditar no que dizia, ainda que às cegas. Desde que o conhecera na ilha que o avaliara como um homem muito seguro de si, mas agora, além de seguro parecia-lhe determinado, implacavelmente determinado.
Reparou que desde que se sentara, um homem na fila à sua frente não parava de o olhar. Era um tipo careca, mais velho do que Jonas, com idade para ser seu pai. A insistência do seu olhar embaraçava-o. Tinha vontade de se levantar, chegar ao pé dele e perguntar-lhe por que raio é que não parava de o olhar. É claro que não o fez, não se atrevia. O sujeito parecia-lhe bastante elegante e sagaz, detentor de um carisma que o elevava acima do português médio. As imagens adolescentes que Jonas tinha de um nobre acumulavam-se todas no corpo e estatuto daquele perfeito desconhecido. Da última vez que se atreveu a surpreende-lo o velho sorrira-lhe, ou, pelo menos, assim entendera Jonas.
Entretanto a palestra tinha terminado. Bateram palmas, para não ficar mal visto Jonas bateu também. De uma forma bastante competente, rápida e eficaz uma senhora de aspeto sóbrio, dos seus cinquenta, com aquele ar cinzentão de burocrata soviética, apressou-se a comunicar ao auditório que no átrio de entrada tinha sido disposto um pequeno buffet, com sortidos, água e café. Iam fazer intervalo para um pequeno lanche e fumar um cigarro.
Jonas esperou que Samuel saísse, mas, contrariando os seus planos, o palestrante juntou-se a um pequeno grupo que entretanto o abordara, entre este grupo estava o velho. Quando na sala só restavam Jonas e o pequeno grupo à volta de Samuel, este finalmente reparou em Jonas. Visivelmente constrangido disse qualquer coisa ao grupo e dirigiu-se a Jonas – o olhar do velho seguiu os passos de Samuel.
– O que estás aqui a fazer!? – perguntou de chofre.
– O que estou aqui a fazer! Como é que te atreves a fazer essa pergunta… – num ápice Jonas passou de esperançado a possesso. – O que estou aqui a fazer? Mas eu sou algum cão ou algum bandido! Tu não me conheces? O que vivemos…
(Neste preciso momento Samuel interrompe Jonas colocando a mão sobre o seu braço e arrasta-o para um ângulo mais escuro da sala).
– Podes-te acalmar! – disse Samuel num tom tão doce e rasteiro que roçava a súplica. – É claro que sei quem tu és… Mas já passou tanto tempo… I dont´t know, pensei que me tivesses esquecido… Conhecido outra pessoa, não sei.
– É claro que conheci “outra pessoa”, aliás, conheci várias “outras pessoas” – respondeu Jonas ao mesmo tempo que, por sinal de Samuel, baixava a voz, agora quase que sussurrava. – Mas que merda é que isso importa! O que importa é que desde que nos despedimos à porta do aeroporto nunca mais te pus a merda da vista em cima. E o número de telemóvel que me deste… ou, raios, é um número que inventaste! Tens cá uma lata!
– Eu não inventei nenhum número – assegurou Samuel visivelmente embaraçado. – Eu perdi o telemóvel e acabei por mudar o cartão. Aproveitei para me livrar de certas pessoas…
– E de mim também! – disse Jonas como que verdadeiramente não acreditasse na justificação de Samuel. – Ansiei este tempo todo por uma resposta, alguma coisa, um sinal ao menos, que me permitisse poder deixar para trás o que os dois passámos juntos. Se não me querias ver mais, ao menos podias ter tido a coragem para me dizeres isso. Colhões, sabes o que é isso?
– Is more complicate than that… Eu já trazia uma bagagem… Pensei que pudéssemos continuar apenas com aquilo que deixámos na ilha… o paraíso… a lembrança, aquela semana de tórrida e selvagem felicidade…
(Jonas agora com um aspeto comovido, cabeça ligeiramente curvada, sofrível):
– Tu não sabes o quanto eu te admirei… e, justamente por isso, o quanto sofri ao longo de todo este tempo… e o que me dói ainda mais é que na primeira vez que te encontro tu fazes questão de me ignorares como a um perfeito estranho e, ainda agora, que estamos cara a cara, parece-me que só me queres despachar, veres-te livre de mim.
(Um minuto de silêncio constrangedor, Jonas espera que Samuel reaja. Samuel tem também a cabeça baixa, mas como quem mede as palavras. Por fim, ao mesmo tempo que abana a cabeça diz):
– Tu não estás a perceber…
– O que é que eu não estou a perceber!
– Tu não estás a perceber… (pausa, depois Samuel inspira fundo e termina) Eu tenho mulher e dois filhos.
– E que lindos filhos! – a voz é do velho que entretanto poisara a sua mão branca e enrugada no ombro de Samuel.