Bandeira tricolor: Marx, Rancière e Clastres

"La Liberté guidant le peuple", pintura de Eugène Delacroix (1830)
“La Liberté guidant le peuple”, pintura de Eugène Delacroix (1830).

Fraternidade. No Manifesto Comunista Marx e Engels falam da história como produto da luta de classes. Ao fazê-lo, primeiro, enraízam o devir histórico na materialidade e imanência da luta de classes (ao conflito entre produtores e exploradores/detentores dos meios de produção), e, segundo, desvelam este devir histórico como o resultado de um conflito insanável entre classes que constitui uma espécie de a priori de toda a sociedade. A matriz da sociedade assenta na sua organização por classes e consequente conflito. Aquilo que se entende por “consciência ideológica”, ou “cultura”, ou até “mundo das ideias”, reflete os interesses materiais (socialmente estruturais) das respetivas classes dependendo da sua condição social concreta, a superestrutura (o tal “mundo das ideias” ou a “eticidade”, o conjunto de valores e normas que norteiam a sociedade) é o reflexo ideológico da estrutura. Mais do que os interesses de uma classe não coincidirem com os interesses de outra eles são sempre interesses antagónicos, do que resulta o conflito entre os mesmos serem insanáveis. A condição para a libertação do proletariado como classe é nada menos do que o derrube da sociedade burguesa; a conciliação entre ambas é um mito burguês incompatível com a própria “natureza social” das classes. A fraternidade é o reconhecimento desta comunidade de classe e a construção do sujeito que lhe dá rosto e nome: seja este o de proletariado ou, p. ex., o de multidão. A fraternidade, inscrita na luta de classes, é tudo menos uma ideia vaga e moral, mas uma força política que se constrói por dentro da constituição das classes.

Igualdade. Não a igualdade como fim ou como meio mas a igualdade como princípio, eis a tese política basilar de Rancière. A ideia de igualdade como princípio é tão radical que não pode conviver com a sociedade hierarquizada. Se aceitarmos que todos somos iguais não podemos aceitar a naturalização da divisão social do trabalho e a legitimação da desigualdade a partir de mitologias vivas como a meritocracia. A igualdade radical não nos obriga apenas a aceitar uma ideia abstrata de igualdade, mas a reconhecer que a ocupação dos lugares sociais assenta numa ficção que é constitutiva a toda a sociedade reprodutora da desigualdade. Bastaria que mudassem as condições das camadas sociais subalternizadas – em sentido lado: os pobres — para que a sociedade, como um todo, ser completamente diferente, ser completamente outra. Bastaria que as condições sociais dos mais pobres fossem iguais às condições dos mais ricos para que as oportunidades dos primeiros em relação aos segundos se multiplicassem exponencialmente. Na verdade, se as condições fossem iguais para ambos os grupos não estaríamos a falar sequer em pobres e em ricos…     

Liberdade. Em a Sociedade contra o Estado o antropólogo Pierre Clastres rebate, através do seu trabalho de campo junto dos índios da Amazónia (particularmente as tribos dos Guayaki), a tese de que o devir da sociedade coincide necessariamente com a constituição do Estado numa lógica progressista ou teleológica. Mais ainda, de que o devir histórico assenta no devir da “civilização europeia” e, portanto, da afirmação do eurocentrismo. Pelo contrário, comunidades políticas houve e há que se fundaram e se fundam na recusa à “obediência voluntária”, à submissão ao outro, à constituição do poder como alteridade. Estas sociedades, que os europeus aquando das suas primeiras incursões marítimas pelo continente americano se apressaram a denegrir como “primitivas” para desviarem a crítica da selvajaria intrínseca ao seu próprio modo de vida, fizeram da sua força política a luta pela liberdade expressa como recusa de toda a forma de legitimação do poder, a começar pela figura do Chefe. Sociedades contra o Estado, dispostas a morrer pela liberdade, isto é, sociedades contra toda a hierarquia, contra a desigualdade, contra a acumulação da propriedade, contra as instituições. Também para estes índios a liberdade não era uma simples ideia abstrata, mas uma identidade política de princípio contra toda a espécie de alienação e concessão ao poder.   

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Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.

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