A culpa é (outra vez) do salário mínimo?

Dinheiro
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Depois do recente Nobel da economia ter desmistificado a crença liberal de que aumentos no salário mínimo destroem postos de trabalho, e, portanto, aumentam o desemprego, chega agora a vez de desmistificarmos a crença dos nossos liberais – inclusive de esquerda – de que o progressivo aumento do salário mínimo ao longo dos governos apoiados pela esquerda teve por efeito o de, por um lado, transformar o mercado laboral num mercado de salários mínimos, e, por outro lado, de ter estagnado a evolução dos salários médios, camada onde se situariam os trabalhadores especializados que, por seu turno, acrescentariam valor à economia. Ora, como demonstrar de facto a relação causal entre o progressivo aumento do salário mínimo e a estagnação nos restantes salários, nomeadamente do salário médio? Enfim, porque é que a causa para esta cada vez maior concentração da massa salarial dos trabalhadores portugueses no salário mínimo terá necessariamente de estar do lado da política destes governos apoiados pela esquerda, e não na estrutura produtiva nacional baseada em produtos e serviços de baixo valor acrescentados? Até porque há um relativo consenso, à esquerda e à direita, sobre este subdesenvolvimento da economia nacional que atira os salários para baixo e faz de Portugal um país não apenas geográfica mas economicamente periférico em relação aos países mais desenvolvidos da UE.

Ao ver o pivô de um telejornal de um canal privado generalista embandeirar em arco afirmando a crença infundada de que a causa da estagnação do salário médio se deveria às políticas económicas da gerigonça em relação ao salário mínimo não pode deixar de causar estranheza esse ataque em horário nobre, não só às opções “da esquerda”, como aos trabalhadores que dependem desse instrumento dos governos para verem os seus rendimentos aumentados. Percebe-se a premência do aumento sucessivo do salário mínimo quando a vizinha Espanha tem um salário mínimo actual situado nos 965 euros, ou quando continuam a aumentar as despesas domésticas relacionadas com a renda da casa, a água, a electricidade, o combustível… Enfim, tudo despesas cujos preços derivam do funcionamento do mercado e não tanto da regulação estatal.

Por outro lado, se de facto o desequilíbrio das relações laborais – nomeadamente a não revogação da caducidade automática na contratação coletiva – tem tido por efeito a incapacidade dos sindicatos poderem influenciar sectorialmente a progressão da respectivas carreiras e correspondentes salários, nem por isso este necessário equilíbrio das relações entre o capital e o trabalho deixa de reproduzir a mistificação meritocrata e a desigualdade, e até antagonismo, entre a própria classe trabalhadora. 

Assim, da mesma maneira que não devemos partir do pressuposto de que o salário mínimo é o problema, também as diferenças de pontos de partidas entre os trabalhadores não devem servir de justificação para a desigualdade social e económica, mas como um motivo para dotar esses mesmos trabalhadores de mais e melhores condições de e para a igualdade. A um nível politicamente mais progressista, podemos começar também a pensar em formas de organização social do trabalho que passem pela comunização das tarefas indiferenciadas “do cuidado” – como as que respeitam à dimensão doméstica ou ao cuidado do espaço público – de forma a se poder libertar mais tempo para trabalhos onde de facto as pessoas se sintam realizadas. A proposta tem o seu quê de utópico, mas pode afinal haver economia sem pensamento utópico?

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Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.

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